Uma mulher de 24 anos entrou no bloco operatório a esvair-se em
sangue. Morreu em 20 minutos numa mesa de operações do Hospital Simão
Mendes, em Bissau, vítima da urgência mais comum no país: um parto que
requer cesariana.
Ia ter o primeiro filho, mas nem ela nem o bebé resistiram a uma
viagem de centenas de quilómetros com uma hemorragia no útero, recorda
Ramón Soto, o único anestesista de que o Estado guineense dispõe para
satisfazer cerca de milhão e meio de habitantes.
Este é um dos casos com que justifica a importância da formação que
está a decorrer de 35 técnicos em anestesia a distribuir pelas regiões -
porque sem anestesia, não há cesariana, logo, os casos são encaminhados
para Bissau por caminhos que, por vezes, mal servem para andar a pé.
Assim que terminem o curso de um ano, os 35 enfermeiros vão regressar
às regiões de origem para começar a salvar grávidas de uma viagem de
risco para a capital.
A taxa de mortalidade materna do país é a maior do mundo lusófono:
morrem 549 mulheres por cada cem mil nascimentos (em Portugal são dez
por cada cem mil, dados da Organização Mundial de Saúde de 2015).
A maioria dos partos acontece sem um profissional qualificado,
acompanhamento que só é uma realidade para 45% das mães, segundo os
dados do Inquérito aos Indicadores Múltiplos (MICS) de 2014.
A falta de recursos humanos é tão grande na Guiné-Bissau que é fácil ser o único profissional ou especialista em qualquer área.
Mas quando se trata de "uma especialidade como a Anestesiologia, que é
'anémica' até no primeiro mundo, com poucos profissionais", há um risco
acrescido de não haver ninguém com nível científico para a praticar ou
ensinar, realça Ramón Soto.
Há dois anos deixou Cuba e aceitou o desafio do programa H4+ de
promoção da saúde materna e infantil, uma iniciativa de agências das
Nações Unidas financiada pela cooperação sueca.
Os responsáveis pelo programa diagnosticaram o problema e escolheram
Ramón Soto para o atacar, assumindo o papel de único anestesista da
saúde pública de um país inteiro.
Já passou por uma responsabilidade que transformou este médico cubano, 54 anos, num homem hipertenso.
Na sala de operações, "às vezes pede-se uma epinefrina [estimulante
cardíaco] e não há ou o carro de reanimação não está completo ou faltam
medicamentos e tudo isso é fundamental para uma anestesia em segurança",
descreve, ao falar dos sobressaltos que o consomem.
"Há problemas, há stresse", que desafiam Ramón Soto, pese embora os
anos de experiência em cuidados intensivos e noutras cinco missões
internacionais -- uma das quais no Iraque, que coincidiu com uma invasão
militar.
Mais difícil ainda vai ser o trabalho dos técnicos em anestesia que
está a formar, que podem ter que improvisar com menos meios do que na
capital.
"Há muitas mortes, porque as mulheres não vão logo para o hospital.
Ficam em casa e só na fase final procuram ajuda. Às vezes é tarde
demais", queixa-se Júlio Nanque, 33 anos, enfermeiro no Hospital
Regional de Catió, onde já viu a tragédia acontecer mais que uma vez, a
300 quilómetros da capital.
É um dos formandos que está a aprender a aplicar anestesia geral e local.
"Vamos aprender a trabalhar com epidural", destaca Maitana Cardoso,
35 anos, do Hospital de São Domingos, no norte, a meia-dúzia de
quilómetros do Senegal.
A anestesia obstétrica está no centro da formação.
Resta saber se depois de colocados os novos técnicos, as grávidas
conseguem ter tudo o resto do seu lado, para afastar o risco de morte,
porque problemas não faltam.
"São precisos mais especialistas e mais recursos", acrescenta Soto.
Para já, em abril de 2017, haverá mais 35 técnicos em anestesia para
dar esperança numa frente renovada de combate à mortalidade
materno-infantil fazendo mais cesarianas nas regiões.
Lusa