A história recente da generalidade dos países em transição de um conflito ou de uma ditadura ensina-nos que a corrupção e as violações de direitos civis e políticos se reforçam mutuamente e constituem diferentes facetas de uma mesma realidade de desrespeito pelos direitos fundamentais do indivíduo. No entanto, a luta contra a impunidade tem, na prática, reforçado a compartimentação destes dois diferentes tipos de crimes.
Com efeito, nas últimas três décadas (desde o surgimento da justiça de transição nos anos 1990, como se recordou no início desta Parte I), a luta contra as violações de direitos humanos tem seguido uma via de bitola estreita, herdeira de uma concepção legalista que privilegia as respostas em sede penal. Nessa medida, a luta contra a impunidade tem privilegiado a investigação e julgamento de agressões à integridade física dos indivíduos, à restrição da sua liberdade pessoal e aos actos de repressão directa, além das violações em massa, ou sistémicas. As excepções a este entendimento redutor da impunidade são poucas e muito recentes.
A LGDH encara a luta contra a impunidade de forma mais abrangente, numa abordagem que insiste na necessidade de investigar e punir também as violações dos direitos sociais e económicos e, em particular, da grande corrupção. A compreensão dos crimes económicos como violação grave dos direitos fundamentais está em linha com a evolução da jurisprudência e a legislação internacionais. Inspira-se também na tendência, que vem ganhando importância nos últimos anos, de uma leitura mais realista - e, portanto, mais justa -das formas complexas de impunidade e dos mecanismos mais adequados para a combater.
É precisamente esse o sentido de iniciativas muito recentes, como a discussão, em Fevereiro deste ano, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, do relatório provisório de Cephas Lumina, o actual Especialista Independente «nos efeitos da dívida externa e outras obrigações financeiras internacionais dos Estados na satisfação de todos os direitos humanos, particularmente os direitos económicos, sociais e culturais». O assunto número 3 da agenda da vigésima segunda reunião do Conselho de Direiros Humanos, dedicada ao impacto do não-repatriamento de fundos de origem ilícita, era, explicitamente, a «promoção e protecção de todos os direitos humanos» atrás descritos, «incluindo o direito ao desenvolvimento.
A Liga, consciente de que as consequências da corrupção atentam gravemente contra os direitos humanos, entende que é necessário ultrapassar a dicotomia entre violência política e crimes económicos que levou à separação efectiva em linhas estanques de investigação e acusação: de um lado, os crimes políticos, objecto de comissões, tribunais e jurisdições internacionais ou híbridas em pelo menos meia centena de países; do outro, as violações de direitos sociais e económicos, que têm sido deixadas a cargo das frágeis instituições nacionais em situações de transição democrática.
Esta interpretação restritiva e redutora não serve da melhor maneira a justiça devida às vítimas e à sociedade em geral. Antes pelo contrário: a realidade ensina-nos também que a exclusão dos crimes económicos do leque de violações graves de direitos humanos contribui grandemente para perpetuar as injustiças do passado, reforçando o que alguns especialistas designam por «lacuna de impunidade».
Esta dicotomia é, de resto, produto de uma interpretação consolidada sobretudo entre a comunidade de doadores, organizações internacionais (incluindo mesmo, em certa medida, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos) e instâncias de elaboração de uma jurisprudência mais conservadora da luta contra a impunidade.. «A gravidade destas duas formas de abuso [política e económica] parece ser igual apenas na percepção das pessoas e não na mente das instituições internacionais ou das organizações não governamentais que, pela sua práctica, definem significativamente as convenções de direitos humanos e prescrevem para o resto do mundo a forma segundo a qual os direitos humanos devem ser encarados», conforme constata um especialista de referência na definição de padrões mais abrangentes da luta contra a impunidade. Estes padrões são claramente informados por uma vivência dos crimes económicos que é, sobretudo, sentida no mundo em desenvolvimento.
A que corresponde esta percepção mais ambiciosa na sua ideia de justiça? Por um lado, uma justiça de transição limitada aos crimes políticos deixa intacto o acesso de antigos ditadores e líderes, e das elites que os apoia(ra)m, aos bens, propriedades e fortunas que espoliaram e acumularam ilicitamente durante a sua permanência no poder. Por outro lado (e em resultado disso), esses mesmos recursos são activamente aplicados de forma a retardar ou mesmo inviabilizar as investigações de abusos económicos e para bloquear ou sabotar o próprio processo de transição democrática, para não falar já na intimidação de testemunhas e outras manobras contrárias à justiça. «Se a principal motivação atrás da corrupção em larga escala é a cobiça, o acesso a recursos para manter a impunidade é claramente um motivo de igual importância», como provam vários exemplos.
Por último, a escala da corrupção em regimes não democráticos e repressivos atinge, em regra, uma tal ordem de grandeza (visto que não conhece limites de escrutínio nem de punição) que os recursos desviados chegam a representar uma parte importante da riqueza nacional. Isto é uma verdade ainda mais acutilante em países como a Guiné-Bissau, a braços com a escassez crónica de recursos para lutar contra a pobreza, assegurar a satisfação de direitos fundamentais e acorrer às necessidades básicas da população. Em muitos países em desenvolvimento, é, nesse aspecto, mais evidente a insuficiência da visão tradicional da justiça de transição que ignora as realidades de regimes que foram ao mesmo tempo brutais e corruptos.
Os crimes económicos ou as violações de direitos sociais devem ser combatidos e compensados da mesma forma e segundo os mesmos fundamentos legais e morais que os crimes políticos. Um precedente importante foi fixado em Timor-Leste, quando a Comissão de Verdade, Acolhimento e Reconciliação (CAVR) decidiu analisar as violações graves de direitos económicos, mesmo sem ter um mandato expresso nesse sentido, e, em resultado, investigou as fomes e o movimento forçado de populações durante a ocupação indonésia do território. As audiências que a CAVR dedicou a esses temas permitiram apurar, desse modo, que, dos 102.800 vítimas que morreram durante a ocupação, aproximadamente 84.200 morreram de fome ou de doenças e não de agressão física directa ou desaparecimento forçado. «Mais importante, a CAVR estabeleceu um relato muito mais verdadeiro da ocupação indonésia do que aquele que seria obtido se tivesse limitado às violações de integridade física e ligadas aos direitos civis e políticos».
O combate às violações de direitos civis e políticos pode ser mais eficaz e ter maior alcance se conjugado com medidas ao mesmo nível no combate à corrupção e espoliação. O contrário é também verdade, como prova o caso, pertinente entre vários outros, da África do Sul: a negligência na análise dos crimes económicos em processos de transição fragiliza as condições de sucesso da luta contra os crimes políticos.
A Comissão de Verdade e Reconciliação (TRC) sul-africana decidiu não investigar a corrupção por considerar que esse tipo de crimes não fazia parte das suas competências. O resultado foi que uma parte importante dos crimes do apartheid ficou de fora das investigações, como sublinhou um relatório da sociedade civil publicado em 2006 em Pretória. Este estudo demonstrou a relação directa entre corrupção e violações dos direitos humanos e concluiu que «quando o apartheid atingiu o maior grau de repressão, atingiu também o seu maior grau de corrupção».
Ao passar ao lado da ligação intrínseca entre crimes políticos e crimes económicos, a TRC efectivamente perdeu uma oportunidade histórica, pois as provas «desses crimes [económicos] serão ainda mais diluídas ao longo do tempo e o dinheiro roubado continuará a enriquecer os beneficiários da corrupção. Ao enveredar por este caminho, nós optámos por fechar o livro do passado. Uma tal decisão não ameaçará a elite sul-africana e, sem dúvida, será bem acolhida por muita gente. Mas, provavelmente, vai continuar a assombrar a nossa sociedade».
Como salientou em 2008 a organização Transparência Internacional, «não se espera que um governo corrupto que rejeita tanto a transparência como a prestação de contas respeite os direitos humanos. Nessa medida, a campanha para conter a corrupção e o movimento de promoção e protecção dos direitos humanos não são processos discrepantes. Os dois estão inextricavelmente ligados e [são] interdependentes».
Quer isto dizer que os mecanismos analisados no capítulo anterior deste relatório, sejam as comissões de verdade ou os tribunais internacionais, os programas de compensação das vítimas ou os processos contra os autores de violência massificada, podem e devem sair do seu âmbito tradicional de intervenção, acolhendo a luta contra os crimes económicos. A fundamentação legal e doutrinal, de resto, já existe. As poucas excepções à abordagem restritiva tradicional, em que se incluem iniciativas encetadas no Chade, Filipinas, Serra Leoa, Timor-Leste, Peru e Libéria, entre poucas mais, demonstram, apesar de tudo, a diferença tangível de processos em que os crimes económicos são enfrentados em conjunto com os crimes políticos e são, afinal, encarados como aquilo que são em substância: violações graves de direitos humanos.
Esse mesmo entendimento foi defendido em 2006 por Louise Arbour, ex-alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, ao apelar directamente ao envolvimento da justiça de transição numa área mais abrangente do que a dos direitos civis e políticos. Um desafio que, como reconheceu na altura Louise Arbour, «a justiça regular também tem relutância em aceitar: o de reconhecer que não existe uma hierarquia de direitos e a garantia de protecção de todos os direitos, incluindo os económicos, sociais e culturais». Essa «estratégia alargada» da justiça de transição incluiria não apenas todos os crimes cometidos durante um conflito mas também «todas as violações graves que lhe deram origem».
Para a LGDH, a Corrupção traduz num verdadeiro ataque aos direitos humanos e uma autentica afronta a paz e estabilidade de um país. contudo, ela só pode ser enfrentada com um sistema judiciário forte e robusta capaz de moralizar a sociedade e resgatar a confiança dos cidadãos nas instituições do estado. É nesta perspectiva, que a Liga com o apoio da UE PANNE, está a implementar um projecto de monitorização dos tribunais do SAB por forma a avaliar o acesso a justiça e celeridade dos processos. Este projecto culminará com a publicação de um relatório sobre a situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau numa conferência sobre a justiça.
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