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Joseph Pulitzer

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Em Lisboa, sempre com um livro sobre "questões políticas ou sociais"

Chegou em 1945, para estudar Agronomia. Não teve um envolvimento tão grande como outros africanos na oposição ao regime. Distinguiu sempre entre povo e Governo português


O protagonismo que Amílcar Cabral veio a ter não era óbvio para quem o conheceu nos seus primeiros anos de Lisboa, onde chegou no Outono de 1945. Ao contrário de outros estudantes africanos, teve uma intervenção política limitada ao lado da oposição portuguesa a Salazar. De tal forma que só em 1959, quando o seu envolvimento na luta anticolonial já era grande, a PIDE, polícia política do regime, o considerará "desafecto às instituições vigentes".

A guerra tinha acabado pouco antes na Europa quando Amílcar, de 21 anos, filho de pais cabo-verdianos, nascido em Bafatá, na então Guiné Portuguesa, desembarca no cais de Alcântara. Espera-o o Instituto Superior de Agronomia (ISA), que frequenta com uma bolsa de estudo. Nos sete anos seguintes, até partir para a Guiné como agrónomo, começa a solidificar o pensamento que o levará à luta anticolonial.

O país a que o jovem africano chega vive em agitação sócio-laboral e contestação sem precedentes ao Estado Novo. A oposição deposita esperanças em que os ventos de mudança criados pela derrota do nazismo cheguem a Portugal. Em Agosto, tinha ocorrido uma tentativa de golpe, haverá outras nos anos seguintes. Salazar procura adaptar-se. Convoca para Novembro eleições que considerará "tão livres como na livre Inglaterra" e permite a criação do Movimento de Unidade Democrática (MUD). Mas a falta de democraticidade leva a oposição a boicotar o acto eleitoral.

No Instituto Superior de Agronomia, José Sousa Veloso, que se tornaria rosto familiar dos portugueses como apresentador, durante décadas, do programa TV Rural, foi um dos que conheceram Cabral nesses primeiros tempos de Lisboa. "Vi-o no átrio, encostado a um muro, um bocado tímido. Fui dar-lhe as boas-vindas e oferecer-lhe os apontamentos das aulas que já haviam começado. Tornou-se expansivo, muito simpático, muito generoso. Era um excelente aluno, mas sem ser marrão, gostava, pelo contrário, de se divertir, de saborear os prazeres da vida. Uma preocupação nossa foi saber se jogava futebol, pois estávamos desfalcados. Ele disse que dava uns pontapés... E revelou-se um jogador exímio, chegando a fazer parte da selecção das universidades de Lisboa", recordou ao jornalista Fernando Dacosta, num trabalho editado há 20 anos pelo PÚBLICO. Terá chegado a ser convidado para jogar no Benfica.

O "caloiro" não é indiferente ao ambiente político-social. Chegará a dar aulas nocturnas de alfabetização a operários de Alcântara. Assumirá cargos directivos na Casa dos Estudantes do Império - instituição criada para apoiar a formação de elites que reforçassem a ligação das colónias a Portugal, mas que se tornaria alfobre de nacionalistas africanos. Participará em acções de estudantes antifascistas. Mas a sua "preocupação fundamental" nessa altura era "fazer o curso". "Ele era de origem modesta, tinha vindo estudar com uma bolsa e tinha a preocupação de fazer o curso", disse agora ao PÚBLICO Carlos Veiga Pereira, futuro jornalista, chegado de Angola em 1947, que conviveu com Amílcar Cabral em Portugal e mais tarde no exílio.

Nesses primeiros anos de Lisboa, Cabral mantém, segundo Veiga Pereira, "relações cordiais" com elementos da JUC - Juventude Universitária Católica, entre os quais Sousa Veloso. A sua participação em acções da oposição "é reduzida". A sua ligação à "luta antifascista" é "bastante comedida", concorda Julião Soares Sousa, historiador guineense que se doutorou com um estudo sobre Cabral na Universidade de Coimbra.

Em 1952, assina uma exposição ao Presidente da República, Craveiro Lopes, reclamando a retirada de Portugal da NATO e a aplicação das verbas destinadas ao rearmamento na melhoria das condições de vida do povo. O que o leva a ser ouvido na polícia política. Mas não é preso, ao contrário do que acontece com Agostinho Neto, que será o primeiro Presidente de Angola, ou Veiga Pereira. É um dos raros episódios documentados de envolvimento em actividades críticas do regime. "Nunca foi do Partido Comunista e a ligação dele com o MUD juvenil é muito ténue", afirma o jornalista português.

Lutar pelo povo português

Numa entrevista à Rádio Voz da Liberdade, em 1966, quando já é o Amílcar Cabral que ficará na História, lembrará essa fase. "Antes de começarmos a lutar pelo nosso povo, lutámos pelo povo português. Alguns camaradas meus, como o Vasco Cabral [político e escritor guineense], Agostinho Neto e outros, estiveram anos e anos presos nas cadeias de Salazar... Não é porque lutavam por Cabo Verde e Guiné ou por Angola. Não! Lutavam pelo povo português."


A generalidade dos estudantes africanos não separa ainda, em meados do século, a luta anticolonial da oposição ao regime, devido à "assimilação dos valores da cultura portuguesa", considera Julião Sousa. A luta armada é algo que estará ainda longe do seu pensamento. Veiga Pereira, à época dirigente da Casa dos Estudantes do Império de Coimbra, lembra que "o problema da independência não se pôs imediatamente a ninguém", o que movia os jovens africanos, e também Cabral, era a "crítica à situação económica e social que existia nas colónias" ou a discriminação racial.

Mas os interesses do jovem estudante iam muito para além da Agronomia. "Todas as vezes que nos encontrávamos, Amílcar trazia sem falta um livro sobre questões políticas ou sociais que não tinham nenhuma relação com o seu curso", disse Maria Helena de Ataíde Vilhena Rodrigues, colega que conhece no primeiro ano, com quem casará em 1951, que o acompanhará no regresso à Guiné, num depoimento para um livro do jornalista russo Oleg Ignatiev, editado em 1990.

É em Lisboa que acentua o contacto com a literatura marxista, que talvez tenha ainda conhecido nos tempos do liceu, em Cabo Verde, onde fez as primeiras leituras neo-realistas. E com as ideias panafricanistas, através do movimento da negritude de língua francesa. Entre o que lê estão Laski, Engels, Dostoievski, ou a Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de la langue française, coordenada por Léopold Senghor, com prefácio de Jean-Paul Sartre. Experimenta também a poesia, como outros estudantes africanos. O historiador Julião Sousa considera que, sem prejuízo do envolvimento em acções cívicas e estudantis em Cabo Verde, esses anos "foram sem dúvida os mais importantes" do seu período formativo. "Muitos de nós, enquanto estudaram em Portugal, procuraram adquirir as bases necessárias para assumirem perante os seus povos e o mundo as responsabilidades históricas que lhe competem", dirá na entrevista à Rádio Voz da Liberdade.

No livro Amílcar Cabral (1924-1973) - Vida e Morte de um Revolucionário Africano, Julião Sousa considera que é a partir de 1948/1949 que Cabral e outros companheiros orientam as suas preocupações para a libertação dos seus povos e iniciam uma demarcação dos grupos de oposição a Salazar e uma autonomização de estruturas da oposição, designadamente das afectas ao PCP, partido que só em 1957 assumirá claramente a defesa da independência das colónias.

Veiga Pereira admite como possível explicação para o limitado envolvimento de Cabral nas lutas da oposição portuguesa o facto de o amigo ter "consciência clara, desde o início, de que o que lhe interessava eram os problemas de África e não os de Portugal". Ainda que talvez seja, dos futuros líderes independentistas, o que mais apreço manifestará pelo povo português. "Terá sido daqueles o que, no fundo, estava mais ligado a Portugal e que procurou sempre estabelecer distinção entre o povo português e o Governo português." Já empenhado na luta pelas independências, escreverá a Salazar, a propor soluções políticas. Mesmo depois de iniciado o conflito armado, declara-se disposto a suspender a luta se Portugal quiser resolver pacificamente o problema colonial.

Em 1950, termina a parte curricular do curso e, em Fevereiro de 1952, apresenta a tese de licenciatura, O estudo da erosão e defesa da terra na região de Cuba, no Alentejo, dedicada aos jornaleiros da região. Julião Sousa pensa que a escolha do tema da erosão teria em mente os problemas agrícolas cabo-verdianos. "Fez aquilo a pensar em Cabo Verde", disse ao PÚBLICO. Ainda tenta entrar para a Estação Agronómica Nacional, mas acaba por ir trabalhar para a Guiné.

No ano anterior, com outros estudantes, como o angolano Mário Pinto de Andrade ou a moçambicana Noémia de Sousa, Cabral tinha estado na criação do Centro de Estudos Africanos, em Lisboa, importante espaço de formação política. Na segunda metade da década, depois de ter voltado a Lisboa, em 1955 - várias versões referem expulsão da Guiné; Clara Schwarz, professora que o conheceu em Bissau, diz que "foi corrido", Julião Sousa fala em motivos de saúde -, mantém actividade na área agronómica, com estudos e colaboração com o ISA e outras instituições. Mas a sua prioridade é já a luta anticolonial.

Também nesta fase não lhe é indiferente o que se passa em Portugal. "Fui fiel à pátria portuguesa, lutando ao lado do povo português contra o salazarismo. Cantando nas ruas de Lisboa, abrindo brechas entre a polícia, na Rua Augusta, aquando da eleição de Humberto Delgado. Lutei pela pátria portuguesa sem ser português. Estou pronto a lutar hoje", dirá à Rádio Portugal Livre. Parte para o exílio no início de 1960, para cumprir o que acredita ser o seu destino. Dá forma ao que expressara numa carta a Maria Helena, em 1949. "Tu sabes, como eu, quais são as forças que me chamam para África, forças às quais não resistirei, porque trair-me-ia, e à própria vida." 




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