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Joseph Pulitzer

domingo, 23 de março de 2014

Bases para reflexão. Respostas de paz à impunidade e exclusão


"RESPOSTAS DE PAZ À IMPUNIDADE E EXCLUSÃO"


Author: Pedro Rosa Mendes

(Consultant and researcher)

As opiniões expressas neste relatório não refletem necessariamente as posições do CSDN como inteiro, nem os do Gabinete de Ligação de Consolidação da Paz Europeia (EPLO), o Comité (CE) ou do Serviço Europeu para a Acção Externa (SEAE).





Sumário


I Introdução

II Fracturas, conflitos, exclusões


1 - O Estado-problema

2 - Impunidade e rancor

3 - Etnia e tabu

4 - As Armas contra a República

5 - Mulheres e crianças: as vulnerabilidades convergentes

III Procurando novas respostas

1 - Justiça de transição


IV Conclusão

V Referências

 

Sumário


Este relatório foi escrito para informar a mesa-redonda da CSDN, em que participam membros da sociedade civil guineense assim como representantes das instituições da União Europeia e dos seus Estados membros, sobre as estratégias de luta contra a impunidade e a exclusão na Guiné-Bissau.
O documento faz uma introdução ao quadro actual de interrupção da ordem constitucional, recordando os antecedentes e as consequências do golpe militar de Abril de 2012.

A Parte I faz o elenco das principais causas de conflitos na Guiné-Bissau: recuo do Estado, ineficácia do sector judicial, extrema pobreza, tribalismo e narcotráfico.

A Parte II desenvolve esta problemática numa perspectiva da luta contra a impunidade e a exclusão. Identifica-se as percepções de impunidade da população, percorre-se os momentos de consolidação de uma impunidade de Estado.
Analisa-se o tabu do debate sobre as etnias como causa potencial de conflito, concluindo pela resiliência dos diferentes grupos a oportunismos da questão étnica. Observa-se depois o processo de afirmação de uma impunidade armada e do lugar que os militares ocupam no topo da pirâmide do poder. Nos grupos mais vulneráveis, constata-se a situação das mulheres e crianças como vítimas de uma confluência de factores, num quadro de «violência estrutural».

A Parte III aborda alguns esboços de sugestões para o problema da impunidade.

I. Introdução 


A reunião de elementos da Sociedade Civil guineense em Bruxelas, organizada pela EPLO no âmbito da CSDN, uma iniciativa financiada pela Comissão Europeia, ocorre num momento crucial da vida da Guiné-Bissau. A crescente gravidade da situação no país exige um esforço concertado em dois planos. Por um lado, com propostas que consolidem uma saída pacífica, rápida e duradoura para a crise política instalada com o golpe militar de Abril de 2012. Por outro, a definição de uma estratégia que permita enfrentar as causas profundas de conflito no país, nomeadamente invertendo o longo ciclo de impunidade e exclusão em que a Guiné-Bissau tem vivido. As organizações da sociedade civil (OSC) têm um papel crucial a desempenhar em ambas as questões.
A história da Guiné-Bissau como nação independente tem sido marcada pela instabilidade política, por desafios constantes à normalidade constitucional e pelo agravamento geral da insegurança, em especial desde o conflito de 1998-1999.
Golpes de estado, contragolpes e intentonas, assassínios políticos na cúpula do poder e um padrão de desrespeito pelos direitos mais elementares dos indivíduos deixaram de ser a excepção e passaram a ser a regra.

Na última década, os guineenses assistiram, impotentes, à banalização da política praticada de arma na mão.
De 1998 a 2013, a Guiné-Bissau teve dez primeiros-ministros, eleitos sem terminar o mandato, quatro chefes de Estado-Maior, todos afastados por levantamentos militares (e dois foram assassinados em funções pelos militares) sem completar o mandato, e três Presidentes da República e três Presidentes interinos, designados em virtude das sublevações militares.
Neste cenário, as perspectivas de desenvolvimento têm sido repetidamente adiadas e o país, um dos mais pobres do mundo apesar dos seus abundantes recursos naturais, encontra-se hoje na cauda do índice de desenvolvimento humano. A Guiné-Bissau consolidou também o seu lugar nas várias listas de Estados «frágeis» (1), «fracos», «falhados» ou «em colapso», à semelhança de outros Estados africanos (2). Qualquer desses rótulos é difícil de digerir para uma nação nascida de uma guerra de libertação que teve contornos únicos em África.
Num contexto de progressiva alienação do Estado, o golpe militar de 12 de Abril de 2012 veio interromper, de novo, a difícil saída de uma crise profunda e antiga, de que o momento mais chocante foi a eliminação do Presidente da República e do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, em Março de 2009. O golpe, de imediato condenado pela União Europeia, as Nações Unidas e por vários países, deixou a meio o processo eleitoral convocado após o falecimento do Presidente Malam Bacai Sanhá em Janeiro de 2012.

As eleições foram convocadas pelo presidente da Assembleia Nacional Popular,
Raimundo Pereira, que assumiu interinamente a chefia do Estado. Marcadas por uma abstenção elevada (45%), a primeira volta realizou-se a 18 de Março de 2012. O ex-primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior (PAIGC) venceu o escrutínio com 48.97% dos votos, seguido pelo ex-Presidente Kumba Ialá (23%) e por Serifo Nhamadjo (15.75%). Contudo, mesmo antes da divulgação dos resultados cinco dos oito candidatos alegaram a existência de fraude e exigiram a anulação das eleições. Kumba Ialá declarou mesmo que não participaria na segunda volta.
O golpe militar isolou também, ainda mais, o país no plano internacional, sujeitando a Guiné-Bissau e os seus líderes de facto a sanções (a União Africana suspendeu a Guiné-Bissau da sua qualidade de membros da organização) (3) e medidas restritivas (as Nações Unidas e a União Europeia adoptaram medidas restritivas individuais contra militares devido à sua participação no golpe).
A interrupção da normalidade constitucional acompanhou-se de uma nítida escalada dos atentados contra os direitos humanos, protagonizados pelas forças de Defesa e Segurança. A um outro nível, todos os dados apontam no último ano para um aumento do narcotráfico e para uma crescente permeabilidade das estruturas do Estado a redes internacionais de crime organizado, com a conivência ao mais alto nível de hierarquias militares e políticas guineenses.
A gravidade da situação foi bem resumida pelo novo Representante Especial do Secretário-Geral da ONU, que, no primeiro aniversário do golpe militar, alertou para «uma ameaça existencial, enquanto Estado», que a Guiné-Bissau enfrenta actualmente.

1) OCDE (2011).
2) Reno (1997, 2005); Ferreira (2004); Vaz e Rotzoll (2005).
3) Cf. Resolução da União Africana (suspensão da qualidade de membro da organização) e Resolução 2048 (2012) do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

O país perdeu várias oportunidades na sua história para inverter a espiral de insegurança, pobreza e fragilidade. O caminho de saída é cada vez mais estreito e o tempo cada vez mais curto, como vêm alertando de forma coerente as OSC e vários parceiros internacionais da Guiné-Bissau.
Num desenvolvimento positivo recente, os dois principais partidos com assento parlamentar, PAIGC e PRS, assinaram um Memorando de Entendimento a 16 de Maio, na sede da União Africana em Bissau. O documento reconhece «a necessidade de acelerar o processo de transição em curso no país» e estabelece que «o período de transição não deve ultrapassar a date de 31 de Dezembro de 2013». Este compromisso talvez poderá abrir finalmente uma base política para a realização de eleições ainda este ano e desbloqueia a situação de confronto surdo e persistente entre a cúpula dos militares golpistas e o maior partido com assento na Assembleia Nacional Popular, o PAIGC. Contudo, tanto o PAIGC como o PRS rejeitaram recentemente integrar o Governo proposto pelo Presidente da República de Transição e pelo Primeiro-Ministro de Transição no final de Maio de 2013.
A contribuição da Sociedade Civil é tão mais importante quanto o regresso à normalidade constitucional, através da realização de eleições, é um primeiro passo - ainda que insubstituível - para devolver o país às regras do Estado de Direito e da legitimidade democrática.

II. Fracturas, conflitos, exclusões


1. O Estado-problema o debate em torno de soluções duradouras e coerentes para a situação da Guiné-Bissau deve partir de uma constatação de base, confirmada tanto pela literatura mais recente sobre o país como pela experiência directa da realidade guineense: a crise a que se chegou é feita de uma conjugação de factores que actuam em tempos e a ritmos muito diferentes. Alguns factores de conflito remontam à guerra de libertação (as rivalidades intestinas do PAIGC, ou a noção de uma legitimidade supra constitucional dos combatentes).
Outros ganharam relevância depois (a corrupção), ou mesmo só na última década (a expansão do narcotráfico ou a polarização política). Outros são puramente conjunturais, ou até fortuitos, mas não por isso menos operativos (por exemplo, a campanha norte-americana antidroga e anti terrorismo na Sub região, que levou à prisão de Bubo Na Tchuto, em Abril deste ano, e a acusação de outros responsáveis guineenses, galvanizou dinâmicas cujas futuras consequências na transição actual não poderão ser ignoradas).
Outros factores, ainda, actuam no tempo longo da memória que diferentes grupos na sociedade guineense (étnicos e religiosos - mas não só) herdaram do processo histórico de definição do território que hoje corresponde ao país. Em tempos de crise aguda, como a que se vive nos últimos anos, mesmo aqueles factores que evoluem em profundidade e parecem escondidos em épocas normais, como são a identidade (mesmo que imaginada) e a cultura, emergem para se tornarem veículos de conflito potencial (é esse o caso da consciência de
etnia entre comunidades rivais, os Balantas e os Fulas, ou os Fulas e os Mandingas, por exemplo, v. infra).

A definição de estratégias para uma paz duradoura e inclusiva na Guiné-Bissau não pode, por isso, restringir-se a soluções dirigidas apenas à crise presente, vide à solução do pós-golpe de 2012, com um qualquer arranjo de simples partilha de poder entre militares e partidos. Qualquer abordagem feita com esse imediatismo estará condenada ao fracasso e potenciará a eclosão de novas crises, como a história recente do país vem provando (4).
O centro do problema na Guiné-Bissau é, hoje, o Estado, seja pelo que deixou de
garantir (segurança, justiça, desenvolvimento), pelo que produz (violência, instabilidade, impunidade) e pelo que impede (exercício de liberdades, fruição de direitos, partilha de recursos).
As «características de fragilidade» do Estado são conhecidas. As principais, ao
nível interno, incluem «a instabilidade política recorrente desde o conflito armado de 1998-99; o funcionamento irregular e falta de capacidade das instituições públicas no cumprimento das funções básicas do Estado; o défice democrático que se manifesta na necessidade de uma maior independência do poder judicial, de um maior controlo sobre a polícia e na insubordinação das forças armadas ao poder político; o impacto de fenómenos transnacionais como o tráfico de droga e a criminalidade organizada; os elevados níveis de pobreza; a fraca diversificação da estrutura económica e a grande dependência da ajuda
externa. Estes elementos constituem simultaneamente causas e sintomas de fragilidade, impedindo a consolidação da paz e de um desenvolvimento sustentável» (5).
A estas fragilidades podemos remeter as principais linhas de fractura ou pontos de atrito na Guiné-Bissau. Convém sublinhar que nenhuma das causas de conflito nasceu durante a última crise. Nenhuma é, tão-pouco, resolúvel no curto prazo. Pelo contrário, são apenas abordáveis em termos de soluções com alcance no médio e longo prazo. As causas mais importantes são (6):
- Recuo do Estado: a República exerce de forma ténue as suas funções de soberania na maior parte do território nacional fora de Bissau e de alguns centros urbanos;
- Ineficácia do sector de Justiça: tribunais e agentes judiciais deixaram de responder como mecanismo de regulação social e instância de defesa do cidadão; outros sistemas – privados e não democráticos, alguns designados por «tradicionais» - ocupam esse vazio;
- Agravamento da pobreza: o desenvolvimento, prioridade nacional desde a independência, continua uma miragem; a pauperização económica e social chegou ao próprio aparelho de Estado, expondo os seus agentes à corrupção;
- Tribalismo: rivalidades antigas entre grupos étnicos foram reavivadas em torno de conflitos recorrentes (roubo de gado ou competição por recursos naturais como água e delimitação de terras, por exemplo); ganha entretanto terreno a percepção da lealdade étnica como estratégia de acesso ao poder e gestão de clientelas;
- Narcotráfico: redes internacionais de tráfico de droga expandiram a sua actividade e ganharam a colaboração activa de altos responsáveis guineenses; a competição pelos lucros do tráfico veio agudizar a disputa do poder por meios violentos;
- Corrupção: a «mãe dos vícios» (7), fenómeno difuso mas generalizado que aparece ligado ao desvirtuamento das funções do Estado e à matriz de pobreza no país; é importante sublinhar que cada acto de corrupção protagonizado por um titular público é associado a um efeito de cascata, multiplicando efeitos – e repetindo comportamentos; o desvio dos bens públicos para fins privados atinge, em primeiro lugar, os mais desfavorecidos.

4) OCDE (2011).
5) OCDE (2011).
6) Voz di Paz e Interpeace (2010); LGDH (2010); LGDH (2013:1); LGDH (2013:2); Ministério da Justiça (2008).
7) Idem.

2. Impunidade e «rancor»

O elemento mais visível do desmoronamento do Estado é a voracidade com que a violência política tem sido utilizada como instrumento de poder, numa sequência de crimes que continuam até hoje impunes. A longa tradição de violência na Guiné-Bissau entrou numa vertigem que culminou com o assassínio, a 1 e 2 de Março de 2009, com poucas horas de diferença, do chefe das Forças Armadas, Tagme Na Waie, e do Presidente da República, João Bernardo «Nino» Vieira.
A forma como o chefe de Estado morreu e a circulação pela Internet de imagens
chocantes dos seus restos mortais confirmou a banalização da barbárie, em linha com o que aconteceu, anos antes, com a morte não menos brutal do brigadeiro Ansumane Mané, chefe da Junta Militar em 1998-1999. Há um padrão e uma tradição nestas mortes. Estes crimes foram apenas os mais salientes numa década caótica e sangrenta, repleta de eliminações políticas ao mais alto nível da hierarquia do Estado.
Ansumane, «Nino» e Tagme – todos antigos companheiros na luta de libertação -
fazem parte de uma lista de dirigentes, governantes e patentes superiores desaparecidos violentamente nos últimos anos. Da lista não exaustiva fazem parte o general Veríssimo Seabra (morto por espancamento a 6 de Outubro de 2004, por militares regressados de uma missão de paz na Libéria); o deputado e ex-ministro da Defesa, Hélder Magno Proença, e o ministro da Administração Territorial e candidato presidencial, major Baciro Dabó (ambos em Junho de 2009); o irmão dele (um agente da Segurança de Estado, Iaia Dabó, morto já depois de ter concordado entregar-se às autoridades e após ser acusado de protagonizar mais uma tentativa de golpe). Recorde-se também que, na mesma altura, desapareceu o deputado Roberto Ferreira Cacheu e algumas semanas depois foi morto a tiro o coronel Samba Djaló, chefe da Contra-Inteligência Militar e antigo chefe dos Serviços de Informação (8).
No seguimento da alegada tentativa de golpe de 21 de Outubro de 2012, a operação de captura do capitão Pansau Ntchamá, lançada pelo Estado-Maior, causou a morte de pelo menos cinco jovens, acusados de serem seus colaboradores e que foram assassinados no arquipélago dos Bijagós, em Bambaia, onde os corpos foram recuperados.
Continua por apurar o paradeiro de vários oficiais presos na mesma altura e receia-se que também sido executados.
Algumas das mortes de titulares públicos nos últimos anos têm sido relacionadas - sem provas e sem investigações sérias, et pour cause - com o narcotráfico, conjugado com questões de conflitos internos ao PAIGC ou, ainda, de conflitos entre o PAIGC e o PRS.
Se o narcotráfico é um elemento relativamente recente, um estudo dos problemas inerentes ao antigo partido único talvez ajude a compreender uma história de quatro décadas de eliminações e confrontos à margem das regras do Estado de Direito.
Após onze anos de guerra (1963-1974) contra o país colonizador, Portugal, a Guiné-Bissau chegou à independência carregando profundas sequelas (económicas, infraestruturais, humanas, sociais, etc.) de que resultou um difícil processo de reconstrução nacional. «Todavia, o contexto internacional em que se inscreveu o acesso à independência, e que era marcado pelas lutas ideológicas entre o campo capitalista e o bloco comunista, não favoreceu nem a reconstrução nacional nem a reconciliação entre guineenses de diferentes sensibilidades. Assim, as depurações que se seguiram à libertação do país acrescentaram-se às feridas da própria guerra; os excessos dos vencedores atiçaram os ressentimentos dos vencidos, nomeadamente os antigos auxiliares locais do sistema colonial» (9).

8) LGDH (2013:1).
9) Voz di Paz e Interpeace (2010). 

No imediato pós-independência, e com justificações ligadas à sobrevivência do projecto nacional, o regime de Luís Cabral fuzilou centenas de antigos combatentes do Exército português, os chamados Comandos Africanos. Os fuzilamentos dos ex-militares foram decididos por um grupo de dirigentes do PAIGC.
Os Comandos Africanos não eram, na perspectiva do regime, os únicos inimigos da independência. O PAIGC desencadeou também uma campanha contra os representantes das chamadas autoridades tradicionais, sobretudo em áreas onde os régulos eram identificados como colaboradores ou aliados de Portugal nos anos da guerra. Julgamentos populares e execuções sumárias, por vezes em público para servirem de exemplo, marcaram os primeiros anos do regime de Luís Cabral. A 10 de Março de 1976, numa tabanca perto de Canchungo, foi fuzilado em público o régulo dos Manjacos, Joaquim Baticã Ferreira, e o régulo Upaié, além de um ex-comando africano.
Em 14 de Novembro de 1980, o «Movimento Reajustador», nome dado ao golpe de estado encabeçado por «Nino» Vieira, inaugura a tradição de golpes militares como método de substituição de regime e conquista do poder. Oficializou também o papel político das Forças Armadas, que dessa forma mostraram que não estavam dispostas – até hoje - a abrir mão da tutela sobre o Estado e a República.
Em 1980, os golpistas reclamavam uma legitimidade política saída da luta e alegavam uma autenticidade de filhos do chão guineense por oposição à ala «cabo-verdiana» do PAIGC. A tutela militar da política guineense, a cultura das armas no lugar do diálogo e a invocação de legitimidades exclusivistas ficaram, até hoje, como vícios que tiveram consequências desastrosas para a evolução do projecto nacional.
A história da II República guineense – a do primeiro consulado de «Nino» Vieira, antes e depois do multipartidarismo – é um longo cortejo de violência política onde encontramos alguns dos alicerces mais fundos da actual impunidade de Estado e onde se cavaram importantes linhas de fractura social e política. Dos muitos episódios que nunca foram fechados, destaca-se o «17 de Outubro» de 1985, data em que a Segurança de Estado surpreendeu um alegado golpe de estado em preparação. A resposta do regime foi o julgamento e condenação dos supostos implicados, incluindo o vice-Presidente do Conselho de Estado (número dois do regime), Paulo Correia, e o Procurador-geral da República, Viriato Pã.
O processo, que se arrastou por quase um ano, «culminou na dura depuração de
elementos Balantas e não Balantas das armas e do aparelho de Estado» (10). O «17 de Outubro» de 1985 oferece também, olhado hoje, uma lição sobre alguns dos mecanismos de actuação da Segurança de Estado, que, agindo na sombra e sem nenhum tipo de escrutínio democrático, contribuiu em incontáveis ocasiões (as intentonas e inventonas) para minar o Estado de Direito a partir do coração do poder.
O episódio «influenciou profundamente a evolução posterior do país devido ao seu carácter massivo, repentino e brutal, à sua conotação étnica, ao perfil histórico das suas vítimas, na sua maioria figuras históricas da luta de libertação nacional, à sorte cruel reservada a certas vítimas e ao ressentimento incrustado em largos segmentos da população durante as décadas seguintes» (11).

10) Nóbrega (2005).
11) Voz di Paz e Interpeace (2010 ).

A 7 de Junho de 1998, um levantamento militar liderado pelo brigadeiro Ansumane Mané, ex-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, desencadeou o conflito mais grave da história da Guiné-Bissau independente. Golpe de estado que resultou em guerra civil, o conflito de 1998-1999 (onze meses) custou vários milhares de mortos e a destruição da maior parte da infraestrutura da capital.
A guerra, feita em nome da «justiça», inaugurou também uma época caótica de trepidação política, de governação errática e de desnorte institucional, além de ter provocado um recuo drástico do país em termos socioeconómicos. Deixou também, até hoje, «a maior acumulação de rancor entre os guineenses nos últimos anos» (12). Entre as causas directas do conflito encontramos a disputa de poder no seio do PAIGC e o desfasamento entre as estruturas informais de poder que caracterizaram as duas décadas de hegemonia de «Nino» Vieira e as estruturas formais do Estado e dos partidos (13).
A ignição da guerra de 1998 foi o relatório sobre o tráfico de armas para Casamança, que devia ser apresentado pela comissão de inquérito parlamentar a 8 de Junho de 1998.
As conclusões do documento, que encontrou suspeitas de envolvimento ao mais alto nível das Forças Armadas e da Segurança de Estado, continuam até hoje por discutir e, por maioria de razão, continuam por cumprir as recomendações relativas à abertura de investigações e de processos em sede judicial.
«A guerra deixou por reconstruir o Estado, a economia e a sociedade» (14). Desde então, «a impunidade foi institucionalizada e passou a constituir uma regra no funcionamento regular das instituições públicas e privadas com a nítida inércia do sistema judiciário, órgãos de inspecção, instituições de controlo e de fiscalização» (15). Os autores morais e materiais das sucessivas convulsões políticas e militares continuam impunes, com avanços tímidos nas investigações e acusações relativas ao assassínio de «Nino» Vieira e de Tagme Na Waie.
A impunidade é, para a população, em primeiro lugar sinónimo de falta de justiça, como se depreende das queixas mais frequentes dirigidas ao Estado (16). A ideia de impunidade encerra, portanto, a noção de que a justiça é um privilégio de classe, ou antes, a administração da justiça não funciona mas quando um seu agente actua é, em geral, contra os desfavorecidos e os que não têm recursos (para escapar, para corromper ou para litigar).
«O cúmulo da impunidade, na perspectiva das populações, é a amnistia que foi
concedida pelo Parlamento aos que atentaram contra a segurança do Estado e cometeram crimes públicos desde os anos 80». A lei de amnistia «foi duramente criticada por uma boa parte dos auscultados, que consideram-na lei de impunidade e encorajamento para mais matanças e crimes» (17). A lei, incluída num pacote de medidas para assegurar o compromisso da volta à ordem constitucional, foi aprovada em 2008 para todos os crimes «resultantes de motivações político-militares» cometidos até 6 de Outubro de 2004.
Não há elementos que permitam afirmar que a noção de impunidade tem nuances étnicas na Guiné-Bissau, ou seja, que diferentes grupos têm diferentes expectativas de justiça, que são em primeiro lugar dirigidas ao Estado. Há, pelo contrário, elementos empíricos e de senso-comum para afirmar o inverso (18).
É legítimo concluir que a noção de impunidade é transversal à sociedade guineense e que as divisões são, a este respeito, verticais - entre os que podem violar a lei e os outros -, e, não, horizontais. Decerto não na base das etnias (19). A impunidade denunciada pela população não é, nesse sentido, apenas ao nível do Estado, a da grande política e dos grandes negócios (corrupção, tráficos), contribuindo ao aprofundamento da clivagem entre cidadãos comuns e a cúpula do poder, mas também a impunidade, igualmente inquietante, das violações de direitos ao nível da tabanca – ou seja, dentro de cada grupo.

12) Idem.
13) Koudawo (2000).
14) Comité Interministerial para a Reestruturação e Modernização do Sector da Defesa e Segurança(2006).
15) LGDH (2013: 1).
16) Voz di Paz e Interpeace (2010).
17) Idem.
18) Citemos alguns, em torno de três exemplos com valor simbólico. 1. Não foi um partido de base tribal, mas sim o PAIGC de Amílcar e de Luís Cabral, a introduzir a pena de morte na justiça do partido e, mais tarde, da República independente. Tão-pouco foi numa base étnica que o regime fundou o seu aparelho de repressão. 2. O golpe do «Movimento Reajustador» de 1980 aconteceu logo após o encerramento da discussão na Assembleia Nacional Popular para aprovar a nova Constituição, que, contra a opinião geral das bases do partido, incluía a pena de morte na Guiné-Bissau, mas não em Cabo Verde, para o mesmo tipo de crimes. 3. O caso de violência política mais insistentemente associado a uma motivação étnica, o «17 de Outubro», não atingiu apenas elementos da etnia Balanta. O Conselho de Estado, que recusou o pedido de clemência de seis sentenciados, era também etnicamente diverso Se a eliminação de Paulo Correia e Viriato Pã, de etnia Balanta, mantém a persistência de uma assombração, quase três décadas depois, isso resulta, antes de mais, de um consenso sobre o conceito de vítima e a inviolabilidade de vários direitos fundamentais, para os membros desta etnia. Ver, a propósito, De Barros (2011). Para evitar que o processo fosse interpretado como um ataque aos Balantas, o Conselho de Estado acabou por incluir dois elementos não-Balantas no grupo dos condenados sem comutação da pena capital. 
19) No sentido centrípeto, o da união de diferentes grupos em torno de uma experiência de impunidade, há autores que apontam a possibilidade de uma «vitimização da nação», efeito paradoxal da pauperização do tecido económico: a consolidação de uma ideia transversal da sociedade guineense como vítima colectiva do Estado (isto é, de funcionários e políticos). Cf. Kohl (2012)


3. Etnia e tabu 
 
A componente «étnica» da crise guineense é um aspecto delicado de qualquer análise das causas de conflito na Guiné-Bissau e do desenho de estratégias futuras de consolidação da paz. O primeiro sinal – paradoxal - de que o assunto é extremamente sensível é a persistência com que que a questão étnica continua a ser evitada pela generalidade do establishment guineense. Ao mesmo tempo, é inegável que prevalece uma percepção do PRS como um partido de tutela dos interesses da etnia Balanta e que, por outro lado, o discurso da «guineidade» usado por «Nino» Vieira foi recuperado nas últimas eleições (dentro de uma campanha mesmo visual onde algumas etnias de religião muçulmana resultavam excluídas). Parece existir, portanto, um perigo real de instrumentalização da temática ao nível dos políticos.
A existência de uma «questão» étnica é, entretanto, verdade no dia-a-dia e ao nível do cidadão comum. Não apenas as rivalidades étnicas são motivo de discussão e de preocupação da população. Existe também o risco, hoje evidente, de conflitos sociais, fruto em primeiro lugar da ausência de Estado e da falência do sistema judicial (20), mas também da escassez de oportunidades, serem interpretados pelas comunidades como conflitos «étnicos», oferecendo um chão fértil à sua instrumentalização.
A aversão do debate público em relação à questão étnica é, em primeiro lugar, uma herança da ideologia nacionalista de Amílcar Cabral, na versão invocada pelo PAIGC durante três décadas. «Qualquer que seja o grupo étnico é fácil levar as pessoas a considerar que somos um povo, uma nação», afirmava Amílcar Cabral. «O que subsistia de tribalismo foi destruído pela luta armada que conduzimos”, de forma que “só os oportunistas políticos são tribalistas» (21). A orientação de uma unidade nacional compatível com a heterogeneidade étnica vingou no discurso político durante uma geração, numa época durante a qual a «pulsação das etnicidades» ficou relegada para um plano mais cultural do que político (22).
Diferentes autores, no entanto, apontaram claramente a grande importância da
afiliação étnica nas escolhas políticas dos guineenses, aliás em consonância com a literatura genérica sobre etnicidade e comportamento eleitoral (23). Ao abordar conflitos existentes, actualmente, entre comunidades e etnias, é necessário um recuo histórico que permita abarcar as duas componentes históricas da identidade colectiva guineense.
Uma das componentes, como referido, tem a ver com a formação do Estado guineense e com a luta desencadeada pelo PAIGC. A luta de libertação definiu três objectivos de síntese de mobilização: a independência, o desenvolvimento e a unidade de todos os guineenses, definidos como os que vivem no território que correspondia à Guiné Portuguesa. Esta é a componente de médio prazo e a que tem a ver com a identidade nacional.
Há outra, de longo prazo, a componente que tem a ver com a formação do espaço kaabunké. «A divisão do território na fronteira Norte que passou a considerar Casamança como parte do Senegal, em 1886, a invasão fula e a guerra que levou ao fim do Reino do Gabu (...) estão ainda presentes na memória colectiva suficientemente para que as clivagens entre vencidos e vencedores tenham peso na hora de votar» (24).
O Kaabú «resulta de uma herança de séculos e não de uma dezena de anos» (25) e constitui um elemento fundamental para interpretar as interacções dos diferentes grupos (étnicos, sociais, classes) na Guiné-Bissau, na Gâmbia e em Casamança. Recorde-se, a propósito, que, após vencer a guerra de 1998-1999, Ansumane Mané não visitou «nem uma única» tabanca Fula, «querendo assim dizer que a derrota dos Mandingas e dos seus aliados estava ainda presente na sua memória» (26).
É também neste tempo longo que têm que ser avaliadas as formas complexas de
formação de um consenso social sobre as acções dirigidas às populações transfronteiriças, para lá do quadro da relação entre Estados. Ignorar este quadro operativo aos diferentes níveis – desde as relações entre vizinhos dos dois lados da fronteira até ao apoio de Bissau a movimentos separatistas no Senegal – implica, por exemplo, não compreender a questão explosiva do tráfico de armas para Casamança (incluindo após 1999).
É importante referir que a ortodoxia da identidade nacional guineense não era consensual mesmo entre a direcção do PAIGC. «A luta armada de libertação nacional ao promover um certo grau de unidade das populações da Guiné em volta de um objectivo comum – a luta contra o colonialismo português -, criou importantes laços de solidariedade e interdependência entre os diferentes grupos», constatou Manuel dos Santos, «mas, contrariamente ao que muita gente afirma, não realizou a unidade nacional, nem engendrou a Nação guineense. Construiu, sim, as suas bases, os seus fundamentos, os alicerces da Nação e criou as condições necessárias mas não suficientes ao seu aparecimento» (27).
Se, no tempo da luta e do partido único, as etnias estavam confinadas ao domínio da cultura e não da identidade, e o «tribalismo» era remetido a coisa de «oportunistas», auscultações recentes da população sobre as causas de conflito revelam um «mal-estar» sobre a questão (28).

20) LGDH (2013:1).
21) Cabral (1974).
22) Silva (2003).
23) angreman et al. (2006).
24) Idem. Cf. Niane (1989), Pélissier (1989), Mendy (1994) e Lopes (1999).
25) Lopes (1999).
26) Nóbrega (2005).
27) Dos Santos (1989). 
28) Esse «mal-estar» pode ser resumido na declaração de uma sessão do programa Voz di Paz em Mansôa:
«Hoje há problemas étnicos todos os santos dias. Nós mesmos sofremos isso na pele. Dizem-nos sempre que o nosso pai foi vender cola em Nhacra, e isso quer dizer que nós não somos dessa etnia. Mas como é que uma questão dessas pode chegar tão longe? Qual é o efeito negativo disso mais tarde?» Cf.Voz di Paz e Interpeace (2010). 

Assim, o tribalismo foi evocado em praticamente todas as sessões de consulta do programa Voz di Paz (29). As pessoas admitem que o comportamento básico da população em matéria política é inspirado pela afinidade étnica. O recurso a estas afinidades serve não só para agregar os idênticos, mas também para excluir os outros, isto é os que são diferentes» (30).
As realidades no terreno confirmam, por isso, o vigor de componentes de longo prazo da identidade colectiva guineense e a prevalência sobre elementos de médio prazo (os do movimento de Cabral). Este dado deve ser matizado com os indicadores de que as comunidades mantêm a capacidade de agir segundo padrões de tolerância e convivência pacífica que resistem às manipulações dos dirigentes políticos e às suas estratégias de conquista de poder.
No entanto, a manipulação política não é o único vector de tribalismo. Outro, importante, é a insegurança de pessoas e bens. O roubo de gado constitui claramente uma das práticas que ameaça a convivência entre grupos étnicos que até aqui viviam em coexistência pacífica, como os Fulas e os Balantas. O conflito dormente entre Fulas e Mandingas reaparece também no quotidiano, com atavismos ancestrais em velhas roupagens, por exemplo na recusa das duas comunidades em associar-se para as campanhas de vacinação (31).
É também preocupante o vector religioso, constatando-se mesmo no âmbito das
eleições de 2012 e no contexto do debate sobre o novo Presidente do PAIGC em 2013, a acentuação da associação entre pertença a uma religião e identidade tribal, ao longo de linhas dos grupos «muçulmanos», ou raça muçulmanu (Mandingas, Fulas, Beafadas) com os de raça criston e os animistas (Papel, Manjacos, Balantas). As linhas de separação ganham uma rigidez que não existia antes e que aparece associada a práticas de exclusão e violência de forte cariz identitário para certos grupos, como é a mutilação genital feminina (v. infra).
As «susceptibilidades identitárias» e as «manipulações político-tribalistas» têm, pois, terreno fértil para gerar mais conflitos, funcionando na base de «generalizações precipitadas, preconceitos criadores de frustrações e incompreensões, exclusões provocadoras de radicalismos e cristalizadoras de ódios que enfraquecem a coesão nacional» (32). 

4. As Armas contra a República 
Se é verdade que, na percepção da população, a sociedade guineense sofre os efeitos de uma impunidade de Estado, vem ganhando mais relevância um tipo de
impunidade armada, ao abrigo da qual ninguém está a salvo – nem mesmo os mais altos titulares da Nação. À impunidade por omissão junta-se, cade vez mais, a impunidade por agressão.
As Forças de Defesa e Segurança, pela própria especificidade do sector, ocupam a charneira do problema. Mesmo um membro do actual Governo definiu as Forças Armadas como «uma má herança da guerra de libertação, uma vez que trouxeram a independência mas também a violência» (33).


29) Realizado em todas as regiões da Guiné-Bissau e envolvendo milhares de pessoas de todos os sectores da sociedade guineense – incluindo os militares
30) Voz di Paz e Interpeace (2010).
31 )Idem e LGDH (2013:1).
32) Voz di Paz e Interpeace (2010).
33) CEDEAO/UA/CPLP/EU/ONU (2013).


A permeabilidade de elementos das Forças Armadas ao narcotráfico veio acrescentar um elemento de maior volatilidade.
A ambiguidade da posição das Forças Armadas pode ser resumida na fórmula usada pela Missão Conjunta de Avaliação CEDEAO/UA/CPLP/UE/ONU na Guiné-Bissau, ao reconhecer, em Março de 2013, a necessidade imperiosa de soluções de longo prazo para «os problemas da impunidade, das violações dos direitos humanos e da intrusão repetida do exército na vida política do país que se colocam há muito tempo».
A Missão acrescentou que, «da mesma forma, a questão da reforma dos sectores da defesa, da segurança e da justiça não pode ser dissociada de outras considerações, nomeadamente o papel do exército na libertação do país e na guerra de 1998-1999 e o facto de este exército revolucionário não ter sido capaz de se transformar num verdadeiro exército republicano» (34).
O golpe de Abril de 2012 veio confirmar que o corpo militar guineense não consegue abrir mão da política, ou não parece visar esse objectivo. As relações perigosas funcionam, contudo, também no sentido inverso: a classe política guineense mantém o vício de procurar lealdades nas Forças Armadas. Constata-se que «os políticos recebem os militares ao domicílio ou visitam-nos nos quartéis a horas impróprias, ao mesmo tempo que lhes dão dinheiro para comprar o seu apoio» (35).
As Forças Armadas, numa versão benévola, são «ao mesmo tempo agentes na condução dos assuntos de Estado e vítimas de um clientelismo pernicioso, permanecendo um factor determinante no processo indispensável de refundação do Estado» (36). Passando do plano diplomático para o plano dos direitos humanos, porém, os militares guineenses são acusados de terem praticado «execuções extrajudiciais, detenções ilegais, espancamentos e torturas dos cidadãos e adversários políticos com o objectivo de silenciar as vozes críticas e os opositores ao regime», para além de terem alegadamente constituído um «esquadrão da morte» no Estado-Maior (37).
Entre muitos outros casos, sem remontar atrás de 2012, são significativos os raptos e espancamento de Iancuba Indjai, presidente do Partido da Solidariedade e Trabalho e líder da Frente Nacional Anti-Golpe (FRENAGOLPE), e de Silvestre Alves, presidente do Partido Movimento Democrático Guineense, na sequência da alegada tentativa de golpe de estado do capitão Pansau N’Tchamá, em Outubro de 2012.
A reforma da instituição militar vai ser uma condição sine qua non para uma saída duradourade crise. Mais além, é também uma componente essencial para a alteração estrutural do quadro de fragilidade do Estado guineense, considerando a quantia de recursos públicos devolvidos aos militares. «O ambiente de insegurança causado por vários episódios de guerra e sublevações armadas transformou-se num importante óbice para o desenvolvimento económico e social, desencorajando o investimento, desviando os parcos recursos do país para as despesas improdutivas, impedindo, pela constante instabilidade que causa, qualquer exercício credível de perspectivação e programação do desenvolvimento», constatava, já em 2006, o documento estratégico de reforma do sector.
«Ademais, a intromissão do crime organizado nos interstícios do Estado debilitado pela instabilidade e insegurança, contribui para hipotecar ainda mais o futuro do país» (38).
Uma refundação das Armas, assegurando a dignidade dos Combatentes da Liberdade da Pátria sem transigir nas exigências de uma força republicana, colocará, enfim, as Forças Armadas sob controlo democrático e despidas da tutela original sobre os assuntos de Estado – algo previsto na Constituição desde 1991 (39).


34) Idem.
35) Idem.
36) Ibidem.
37) LGDH (2013:1)
38) Comité Interministerial para a Reestruturação e Modernização do Sector da Defesa e Segurança (2006).
39) Idem. «As Forças Armadas, criadas como braço armado de uma luta política e militar de libertação nacional, conservaram uma característica política. Esta politização, indispensável para assegurar a força da consciência política da luta de libertação nacional, perdurou sob a vigência do regime de partido único, o que implica uma estreita relação orgânica entre o partido, as forças armadas, o Estado e as forças vivas da nação».


5. Mulheres e crianças: as vulnerabilidades convergentes 
 
A Guiné-Bissau é «um dos países mais pobres de entre os mais pobres» (40), ocupando a 176a posição entre 186 países no último Índice do Desenvolvimento Humano (41). Dos cerca de 1.5 milhões de habitantes da Guiné-Bissau, 69.3% vive em situação de pobreza absoluta (i.e. com um rendimento inferior a 2 dólares por dia), comparado com 49% em 1991, de acordo com o ILAP (42) realizado em 2010. O inquérito revela também um agravamento na incidência da pobreza extrema (abaixo de 1 dólar por dia) que passou de 20.8 para 33% entre 2002 e 2010.
Alguns progressos no acesso aos serviços sociais de base (educação ou saúde) não obstam a que a maior parte dos indicadores sociais esteja entre os mais baixos da África Subsaariana (43), Estes indicadores revelam ainda fortes disparidades geográficas (nomeadamente entre meio urbano e rural) e entre homens e mulheres, com a persistência de factores importantes de discriminação de género no acesso ao emprego.
Mesmo antes do golpe de 2012, a impossibilidade de cumprimento das metas dos Objectivos do Milénio era patente no nível de investimento nos sectores sociais, que, em 2010, se situava em 22% (segundo o FMI) – muito abaixo dos 40% recomendados a nível internacional (44).
«Em termos de impacto da pobreza na sociedade guineense, as mulheres constituem hoje 51,5% dos pobres do país, tendo sofrido mais do que os homens e mais rapidamente a evolução da pobreza» (45).
Na tentativa de definir e explicar os fenómenos de violência, tem sido sublinhado o facto de as violências contra as mulheres na Guiné-Bissau se enquadrarem num contexto económico, institucional e político desfavorável à resolução dos problemas estruturais determinantes dessas práticas.
«Neste quadro, as mudanças de longo prazo influenciadas pela acção política estão comprometidas. A violência estrutural – sob a forma de violência institucional, económica ou política – surge como pano de fundo (...) por via da corrupção, da falta de investimento nos serviços sociais e na justiça, do mau exemplo das elites, da permanente desconfiança face ao Estado, do isolamento de várias comunidades e da pobreza» (46).


40) OCDE (2011).
41) PNUD (2013).
42) Inquérito Ligeiro para a Avaliação da Pobreza.
43) É o caso da esperança média de vida (48.6 anos) e das elevadas taxas de mortalidade materna e infantil.
44) O cumprimento dos principais ODM exigiria um crescimento médio do PIB guineense superior a 7% até 2015 e um nível de investimento próximo dos 40% da riqueza criada no país.
45) LGDH (2013:1). A incidência da pobreza aumentou para os agregados familiares chefiados por mulheres, de 2002 a 2010, em 9,2%, (de 56,1% para 65,3%), e para os agregados familiares chefiados por homens em 4,2%, (de 66,1% para 70,3%). Contudo, os agregados familiares chefiados pelos homens são mais pobres que os chefiados pelas mulheres, em particular no meio rural: 65,3% dos agregados familiares chefiados pelas mulheres vivem numa pobreza absoluta e 29,8% em pobreza extrema.
46) Roque (2010).


É este cenário que leva à manutenção de regras e práticas sociais baseadas nas
trocas de mulheres e na justiça praticada fora do âmbito do Estado e de forma aleatória.
A violência é facilitada pela falta de confiança na justiça formal, pela sensação de impunidade e pelo clima socioeconómico particularmente desfavorável aos sujeitos mais vulneráveis. «A relação entre Estado e cidadão já desvirtuada ou inexistente em termos gerais assume proporções de desigualdade extrema em relação às mulheres, uma vez que o Estado não garante a protecção nem legal, nem psicológica, nem económica face às práticas violentas» (47).
Confirmando uma convergência de diferentes linhas de exclusão estrutural, as
estatísticas referentes à escolaridade são alarmantes: 56,28% da população adulta é analfabeta, dos quais 64.12% são mulheres; o ensino secundário é frequentado por 27,3% dos rapazes e apenas 19,9% das raparigas. Na Guiné-Bissau, 40% das mulheres jovens com a idade entre 15-24 anos são alfabetizadas. Entre as mulheres dos agregados mais pobres, somente 12% são alfabetizadas. A taxa de alfabetização cresce com o aumento do poder económico e, entre as mulheres vivendo nos agregados mais ricos, atinge os 73%.

A violência e exclusão de género interceptam, aliás, formas de violência contra outros grupos vulneráveis no mesmo contexto socioeconómico: ao nível da Guiné-Bissau, 57% das crianças com idade entre 5-14 anos estão envolvidas no trabalho infantil. As crianças vivendo nas zonas rurais têm mais probabilidade de estarem envolvidas neste fenómeno que as crianças dos centros urbanos (65% contra 45% da zona urbana) (48).
A violência estrutural - a de responsabilidade directa ou indirecta do Estado - surge portanto como um factor mais importante de exclusão e violência do que o contexto étnico, apesar de este merecer normalmente mais atenção em práticas como o casamento forçado.
«Apesar de os casos mais notórios e que mais destaque têm tido na imprensa, serem os casos de meninas Balanta, esta não é a única etnia que mantém este tipo de práticas, é talvez aquela em que as raparigas começam a ter coragem para fugir (...) Apesar de algumas diferenças nas tradições étnicas, parece ser o factor ruralidade, isolamento e fechamento da comunidade ou ainda religioso o que mais determina os acontecimentos» (49).
Segundo os dados mais recentes (MICS/4, de 2010), 50% das mulheres com idade entre 15-49 anos declararam que foram submetidas a uma qualquer forma de mutilação genital feminina ou excisadas. Nas filhas com idade entre 0-14 anos, 39% foram submetidas a uma certa forma de MGF/E, «de acordo com as declarações das suas mães». 40% das mulheres com idade entre 15-49 anos são a favor da continuidade desta prática da mutilação genital (50).

47) Idem.
48) Instituto Nacional de Estatística (2010).
49) Roque (2010).
50) Instituto Nacional de Estatística (2010).

III. Procurando novas respostas


1. Justiça de transição

O retorno à normalidade democrática na Guiné-Bissau e o desejável processo de
genuína reconciliação nacional deverão ter como eixo a luta contra a impunidade, garantindo que será feita justiça em relação às violações graves de direitos humanos no passado. Esse caminho deverá ser trilhado no respeito pelas normas aceites na legislação e jurisprudência internacionais de luta contra a impunidade. A plataforma conceptual e normativa consubstancia-se no quadro definido pelos chamados Princípios de Joinet/Orentlicher (51) em quatro áreas de intervenção:
* O direito de saber
* O direito à justiça
* O direito a compensação
* Garantia de não repetição

Os princípios contra a impunidade têm «por base os preceitos de responsabilidade do Estado e do direito inerente à compensação das vítimas de violações graves de direitos humanos. Como tal, (...) não implicam novas obrigações legais internacionais ou internas mas identificam mecanismos, modalidades e procedimentos para a implementação de obrigações de direito humanitário internacional e de direitos humanos internacionais» (52) .
Por impunidade deve entender-se «a ausência, de direito ou de facto, de responsabilidade penal dos autores de violações, bem como da sua responsabilidade civil, administrativa ou disciplinar, na medida em que estes escapam a todas as tentativas de investigação tendentes a possibilitar a sua acusação, a sua detenção, o seu julgamento e, no caso de serem considerados culpados, a sua condenação a penas apropriadas, incluindo a de reparar o dano sofrido pelas suas vítimas» (53)
Enfrentar o passado para construir bases sólidas para o futuro, «é um dos desafios, mais difíceis para sociedades em transição de regimes autoritários para formas mais democráticas de governo». A Guiné-Bissau encontra-se perante esse desafio e necessita de restabelecer uma base de confiança e responsabilidade na sociedade. É necessário «reconhecer publicamente os abusos ocorridos, de responsabilizar aqueles que planearam, ordenaram e cometeram tais violações e de reabilitar ou compensar as vítimas» (54) .
O desafio é maior «num contexto de colapso institucional, exaustão de recursos,
segurança reduzida e uma população angustiada e dividida», como sublinhou o secretário-geral da ONU ao instituir o quadro de referência da organização na luta contra a impunidade. (55) A resposta ao espectro de violações de forma «integrada e interdependente» através da justiça transitória «pode contribuir para alcançar os objectivos mais abrangentes de prevenção de novos conflitos, de paz e reconciliação» (56) .
Nesta altura da transição política, a discussão deve abranger mecanismos judiciais e extrajudiciais existentes, incluindo acusações formais, processos de busca da verdade, programas de compensação, reforma institucional «ou qualquer combinação deste conjunto», como também refere o mesmo documento. Diferentes propostas – e não apenas a nível interno (57) - têm vindo a público no último ano, incluindo a de um tribunal penal internacional para a Guiné-Bissau ou algum tipo de comissão internacional de inquérito, em especial para analisar as mortes de «Nino» Vieira e Tagme Na Waie.
A definição do(s) mecanismo(s) a adoptar deve abrir-se à participação de vítimas e outros cidadãos, de forma a assegurar que as políticas respondem às necessidades reais das vítimas.


51) Louis Joinet formulou os princípios de luta contra a impunidade em 1997 num relatório final sobre mecanismos de justiça e a impunidade para a Subcomissão da ONU. Os princípios foram actualizados por Diane Orentlicher, em 2005, a pedido da Comissão de Direitos Humanos.
52) Sisson (2010).
53) Relatório E/CN.4/2005/102/Add.1 «Definições, A. Impunidade»
54) Sisson (2010).
55) Nota de Orientação do Secretário-Geral, «A Perspectiva das Nações Unidas sobre Justiça Transitória», Junho 2010.
56) Idem.
57) ICG (2012).

Esta abordagem participativa «pode contribuir para reconstituir a plena integração cívica daqueles a quem foi negada a protecção da lei no passado» (58)
As OSC e os parceiros internacionais da Guiné-Bissau podem, nesta altura, pressionar os partidos políticos e as autoridades de transição para que se evite uma nova ronda de amnistias. O alcance das amnistias e clemências está, aliás, limitado pelos princípios internacionais, «incluindo nas ocasiões em que se destinam a criar condições propícias a um acordo de paz ou a favorecer a reconciliação nacional».
Uma última referência pertinente para o debate sobre os instrumentos de justiça
transitória: o Conselho dos Direitos Humanos da ONU aprovou uma série de documentos que visam dar ao direito à verdade o estatuto de obrigação de direito internacional (59) . Algo a reter quando se prepara uma verdadeira transição numa sociedade que acumula demasiados segredos sobre a sua história comum.

58) E/CN.4/2004/88, para.11.
59) Trata-se de dois estudos preparados em 2006 e 2007 pelo Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (E/CN.4/2006/91e A/HRC/5/7). Seguiu-se uma investigação mais específica sobre o lugar dos arquivos e da protecção das vítimas constitutivo do direito á verdade (A/HRC/12/19).

 

IV. Conclusão


A Guiné-Bissau pode, em 2013, iniciar o longo caminho de reconstrução de um Estado fragilizado por décadas de más práticas políticas, de má gestão de recursos, de empobrecimento da população e de conflitos sangrentos, incluindo uma guerra civil que dividiu as Armas e a sociedade. A alternativa não o é, realmente: continuar na senda da política a tiro, do esbulho dos recursos que são de todos, da corrupção aliada a práticas criminosas e da transformação das Forças de Segurança num conjunto de milícias rivais.
No decurso dos últimos meses, alguns passos foram dados para desbloquear uma efectiva transição, nomeadamente com a assinatura de um entendimento mínimo entre os dois maiores partidos. As organizações da sociedade civil têm uma palavra a dizer nas modalidades desta transição, quando ganha consistência a hipótese de eleições em Novembro.
O escrutínio será, no entanto, o primeiro passo de um regresso à normalidade constitucional suspensa há mais de um ano. Tudo o resto estará por fazer. A reconciliação autêntica da sociedade guineense depende da persistência em objectivos ambiciosos, mas elementares: a luta contra a impunidade, a luta contra a pobreza e a luta contra a violência.
Juntas constituem, para invocar uma síntese de Cabral, uma nova «luta pelo povo».

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