Quando a angústia e o equívoco geram impasse diplomático
Em boa verdade, as declarações
recentemente proferidas pelo ex-presidente cabo-verdiano, Comandante
Pedro Pires, cito “…as forças armadas da Guiné-Bissau, 40
anos após a independência, transformaram-se em instrumentos de
tirania e delinquência…” fim da citação, e consequente
reação do porta-voz das forças armadas guineenses, Brigadeiro
General Daba Na Walna, podem ser analisadas de várias perspetivas,
nomeadamente do ponto de vista do exercício e relações de poder,
do debate entre o pluralismo e elitismo, da diplomacia e relações
internacionais, do conceito de estado e da administração e
políticas públicas.
Contudo, e uma vez que este não é
espaço indicado para aflorar todas estas matérias, atendendo à
complexidade técnica das mesmas, pretendo apenas perspetivar a minha
análise em alguns pontos cruciais que me parecem adequadas ao
presente contexto.
Não restam
dúvidas que o comandante Pedro Pires colocou o dedo na ferida, disse
o que disse porque sentiu-se revoltado e frustrado pela conquista,
agora infrutífera, da verdadeira forças armadas que combateram com
bravura nas matas da Guiné-Bissau. Portanto, quando faz uma
declaração desse tipo, com
certeza que o faz na qualidade de
cidadão cabo-verdiano, não conferindo o mesmo uma conotação
política, partidária e/ou governamental. Todavia, a mesma tem força
e faz “eco” junto das populações e, consequentemente, junto dos
poderes e órgãos de soberania desse País, atendendo ao papel que o
mesmo desempenhou enquanto comandante das forças armadas, dirigente
do PAIGC e antigo chefe de estado cabo-verdiano, portanto uma figura
pública respeitável e acarinhada por todos.
Por um lado, a legitimidade que lhe é
conferida como comandante das forças armadas durante a luta de
libertação permite-lhe fazer essas declarações mas não lhe
outorga, presentemente, a qualidade de executor sobre o garante de
autoridade e defesa territorial de um País. É necessário bom senso
e prudência. Por outro, é bastante doloroso para a Guiné-Bissau e
seu povo suportarem violentos açoites, como se de um saco de
pancadas se tratassem, independentemente da classe que prevarica e
põe em causa o processo democrático desse país, obviamente um
facto lamentável, deplorável e condenável.
O que importa aqui não é a defesa da
razão, mas sim a serenidade e capacidade de articulação política
e diplomática com sabedoria e responsabilidade. Contudo, não existe
um efeito sem uma causa, como é óbvio.
Na verdade a Guiné-Bissau apresenta
um Estado desestruturado, existindo um conflito de interesses entre o
poder político e o poder militar, pelo que é importante analisar
friamente essa estrutura e perceber a verdadeira origem de toda a
instabilidade latente.
Este é um dos setores que mais
problemas tem dado ao País nos últimos anos, conforme aliás foi
reconhecido pelo próprio responsável militar, uma vez que resultam
daí múltiplas causas para as derivas permanentes, tais como a luta
pelo poder no seu seio e entre ela e classe política pelo controlo
do poder e dos recursos do Estado e do País.
Por um lado, é preciso notar que nas
sociedades pós-conflito, como é o caso da Guiné-Bissau, faz com
que haja a sobreposição ou a confusão entre o poder politico e o
poder militar. Quando falamos na reforma das forças armadas estamos
a falar na reforma do próprio poder ou seja a tocar em privilégios
dos agentes do poder. Como é óbvio, na sociedade guineense, todos
os que ganham poder têm medo de o perder.
Por outro, se assumirmos que esta
classe está sobredimensionada no seu número, com uma idade avançada
dos seus operacionais e com uma pirâmide distorcida na sua relação
entre oficiais, sargentos e praças e com agravante de possuir um
elevado índice de analfabetismo na sua estrutura, qualquer processo
de reforma que se pretende implementar apresentará sérias
dificuldades de articulação. Ou seja, os obstáculos serão maiores
quanto maior forem as resiliências neste processo de reforma.
Porém, isto não configura o mosaico
global e padrão de atuação e orientação estratégica deste
setor, pois na verdade não é toda a estrutura militar que
obstaculiza o processo de reforma e do exercício da democracia. A
verdade é que, não obstante, a Guiné-Bissau tem militares de
carreira, formados em ilustres academias e com distinção,
atualmente inibidos perante as suas chefias. No entanto, existem
militares que estão contra a atual situação, não por estarem fora
do bolo, mas por estarem em profundo desacordo com os caminhos
tomados e que querem dar à instituição militar a dignidade devida,
dentro da lógica dum regresso às casernas e submissão ao poder
político. Há-os, certamente de todas as etnias e classes sociais.
Ora, no que se refere aos equívocos
entre o papel do Estado, administração pública, forças armadas e
poder político, acresce salientar apenas o seguinte:
De facto, o que não se concebe é a
lógica que se tem mantido em virtude do País se encontrar
desorganizado, um Estado completamente desestruturado, um poder
político debilitado e desgastado, um mau funcionamento da
administração pública e setores empresariais estatais, ser o
sinónimo de desestabilização e desorganização no seio das formas
armadas, como foi amplamente referido e difundido por tal responsável
militar. Convém aqui salientar que não se podem confundir as
funções com as finalidades ou objetivos do Estado, que são vários,
tais como de natureza militar, económica, social entre outras.
Todavia as funções básicas do Estado, mesmo com outras palavras ou
acréscimos por parte de uns e concentrações por outros permanecem
as mesmas desde Aristóteles aos nossos dias. Atualmente, os Estados
consolidaram estas três funções que passaram a ser exercidas por
órgãos correspondentes de forma harmónica e interdependente,
nomeadamente “Legislativa” que estabelece normas gerais e
abstratas que regem a vida em sociedade, “Executiva” que traduz
num ato de vontade individualizado a exteriorização abstrata da
norma e “Judiciária” que dirime as controvérsias que podem
surgir na aplicação da lei.
As forças armadas de
uma nação constituem
de facto o conjunto das suas organizações e forças de combate e de
defesa. Na grande maioria dos países, as forças armadas são
instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com
base na hierarquia e na disciplina. Destinam-se essencialmente à
defesa militar do país e, ainda, são instituições nacionais
autorizadas pela sua nação a usar a força, geralmente através do
emprego de armas, em defesa do seu país, no caso de agressões
externas obviamente. Ou seja, as forças armadas têm o “poder”
de erguer ou deixar cair uma Nação por motivos sobejamente
conhecidos e que não passam necessariamente pela questão da
desorganização política ou dos atores políticos.
Porém, não confundir essa autoridade
com a autoridade formal que é um tipo de poder legitimado,
respeitado e conhecido por aqueles com quem se interage. A
legitimidade é uma forma de aprovação social essencial para
estabilização das relações de poder, aparecendo quando as pessoas
reconhecerem que alguém tem o direito de mandar e quando aquele que
é mandado considera como um dever obedecer. É preciso ter
consciência que a democracia depende da confiança e do apoio dos
cidadãos e que falta de consenso popular pode paralisar uma política
pública e automaticamente um País.
Tendo em consideração estes
pressupostos, é natural que se pede prudência nos discursos,
responsabilidades e cumprimento estrito das competências
subjacentes, evitando dessa forma as declarações como as que foram
há bem pouco tempo proferidas por alto responsável da estrutura
militar, a quem deveria ser o exemplo e referência para os seus
subordinados, dizer que enriqueceu à custa do descontrole das nossas
Finanças Publicas, o que poderá ser entendido como fomentar a
corrupção e criminalidade económica; indiciar ajuste de contas e
ameaçar qualquer cidadão, podendo ser entendido como fomentar a
violência e a impunidade. Em face disso, é natural que se
consideram “razoáveis” as declarações tais como aquelas
proferidas pelo comandante Pedro Pires.
No entanto, devemos procurar não
inflamar as nossas angústias quando temos a certeza de que a mágoa
será ainda maior para quem já não suporta mais a dor. O povo
guineense sofre todos os dias com a situação do País, mas procura
aplacar as suas dores com as palavras de esperança e de
encorajamento! LV
Lisboa, 18/09/2013 Luís Vicente
(*) titulo atribuído pelo editor do blogue
(texto escrito conforme acordo ortográfico)
Sem comentários:
Enviar um comentário