“O processo é simples: vai treinar a um clube, não fica. Vai a outro, também não fica. E assim sucessivamente. O agente que traz o jogador pensa sempre que há de colocá-lo em algum lado. Mas por vezes não é possível. Nesse caso, abandona-o. É aí que começa o verdadeiro drama”.
O
especialista em direito desportivo João Diogo Manteigas trabalha com
vários países africanos e conhece bem a realidade dos jovens que chegam a
Portugal para jogar futebol mas acabam em situações de precariedade e
ilegalidade. Muitos deles são oriundos da Guiné Bissau. “Entrar no país é
fácil. Os jogadores trazem sempre vistos de estada temporária. O
problema é ficar num clube que depois ajude na renovação do visto ou na
legalização. Entre aqueles que conseguem clube, cerca de 95% vão jogar
para o Campeonato Nacional de Seniores, no futebol amador. Estamos a
falar de clubes sem capacidade financeira, que depois não querem ou não
conseguem ter despesas com a legalização do jogador”.
Ailton Pereira é uma excepção à regra. Veio da Guiné e fez carreira
em clubes como o Chaves, o Barreirense e o Atlético. Pelo meio ainda
passou pelo Logroñés, do futebol espanhol, e foi internacional pela
selecção guineense. Abandonou os relvados no final da temporada
2012/2013, finalizou a licenciatura em Direito e hoje é empresário de
vários jovens africanos a actuar no futebol português. Costuma ser
abordado por jogadores guineenses que chegam a Portugal por intermédio
de outros agentes: “Ficam sem clube e são abandonados pelos seus
representantes.
Tento ajudá-los organizando alguns treinos e jogos para
que, pelo menos, não fiquem parados”. Lembra que em Portugal há cada vez
mais atletas abandonados com paradeiro incerto. Dá um exemplo: “Houve
um miúdo que veio com um visto de 15 dias para encontrar clube. Foi
treinar a um clube do centro, mas o SEF [Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras] apareceu lá e ele fugiu. Continua aqui, mas ninguém sabe
dele”. As práticas de alguns agentes são outro problema: “Certos
empresários trazem jogadores da Guiné sem qualquer despesa. O dinheiro
da viagem e do visto é pago pelo jogador ou pela sua família. A passagem
anda à volta dos 800 euros e o visto ronda os 200, 300 euros. Dessa
forma não há risco da parte do empresário. Se o jogador ficar em algum
lado, ele vai querer a compensação. Mas se não arranjar clube, fica
entregue à sua sorte”.
SEF aperta o cerco
Os números não mentem. Há cada vez mais casos como este. O SEF
investigou, recentemente, 104 clubes e associações desportivas em todo o
país e identificou 503 atletas estrangeiros, dos quais 203 estavam em
situação ilegal. Só na zona Centro, em 60 clubes, foram encontrados 157
jogadores irregulares, sendo que 107 nem sequer tinham condições de
poderem ser legalizados. Três deles acabaram mesmo detidos por terem
ignorado notificação anterior de abandono voluntário.
O presidente do Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol
(SJPF), Joaquim Evangelista, salienta que os atletas são as maiores
vítimas de um esquema de “tráfico humano com fins futebolísticos”
perpetrado por “agentes e intermediários” com a conivência de clubes que
“servem de 'barrigas de aluguer' para as pessoas que trazem esses
jogadores”. O seu discurso vai de encontro às palavras de Ailton
Pereira: “Se o jogador tiver sucesso”, garante Evangelista, “o agente e o
clube de destino ganham dinheiro com uma futura transferência. Se não
tiver sucesso, acaba abandonado”. O presidente do SJPF lembra ainda que
muitos destes jogadores “ficam na miséria, sem casa, sem dinheiro e sem
possibilidade de voltar ao seu país.
Não conseguimos ajudar todos
porque, infelizmente, há cada vez mais casos, mas temos ajudado alguns”.
O último foi o brasileiro Caio Silva, de 22 anos, que estava a treinar
na Naval: “Entrou em contacto connosco, desesperado, dizendo que o
agente o tinha abandonado e que o clube queria que ele saísse das
instalações onde estava hospedado. Pagámos-lhe a viagem de regresso ao
Brasil para que não ficasse na rua”.
Segundo Evangelista, o SJPF recebe cada vez mais pedidos como o de
Caio. “O fenómeno do abandono tem vindo a aumentar e está identificado
há muito tempo a nível internacional. Foi por isso que em 2001 a União
Europeia proibiu as transferências de menores de 18 anos. Já nessa
altura se começavam a conhecer muitos casos de jogadores abandonados no
futebol europeu, vindos, na sua maioria, de África e da América do Sul”.
FC Porto sob suspeita
Alguns clubes, porém, encontram forma de contornar esta lei. Celebram
contratos com os pais dos menores em empresas fictícias ou no próprio
clube, como roupeiros, cortadores de relva ou funcionários de
secretaria. Em Abril do ano passado, a FIFA proibiu o Barcelona de
contratar jogadores durante um ano por entender que o clube catalão agiu
desta forma na aquisição de dez atletas menores. Segundo o comunicado
da entidade que rege o futebol mundial, “as investigações
relacionaram-se com vários jogadores menores que foram registados e
participaram em competições ao serviço do clube ao longo de vários
períodos entre 2009 e 2013”. As mesmas suspeitas também recaíram sobre o
FC Porto, em 2007, quando contratou o brasileiro Anderson, então com 17
anos. Alegou-se que a legalização do jovem foi conseguida através de um
contrato de trabalho fictício com a sua mãe, mas o caso nunca chegou
aos tribunais.
Os dragões voltaram a ser notícia no mês passado por causa de um
jogador da sua equipa de sub-19. O nigeriano Chidozie Awaiziem foi
detido pelo SEF quando voltava a Portugal, depois de um jogo frente ao
Real Madrid a contar para a UEFA Youth League. Enquanto o restante
plantel regressou de avião, o central dos dragões vinha de automóvel, na
companhia de um responsável do clube, e foi intercetado já em
território português. Awazie, que chegou esta época ao clube da Invicta,
foi identificado e está à espera de ser chamado para depor no âmbito de
uma investigação do SEF relacionada com a permanência ilegal de jovens
jogadores africanos no futebol português.
Apesar de existirem alguns casos relacionados com clubes grandes, o
advogado João Diogo Manteigas defende que são excepções em comparação
com o que se passa no futebol amador: “Os clubes profissionais não
querem complicações com jogadores ilegais. Mas no Campeonato Nacional de
Seniores é outra história. O SEF fala em 107 casos apenas na zona
centro. Acredito que se fizerem uma investigação em todo o país,
facilmente vão encontrar mais de mil jogadores ilegais”.
Chineses são a nova moda
No último mês de novembro, o SEF e a Federação Portuguesa de Futebol
(FPF) receberam uma denúncia anónima sobre possíveis irregularidades no
Campeonato Nacional de Juniores, envolvendo clubes como o Oeiras,
Torreense, Loures, União de Leiria e União Povoense. Jogadores sem
contrato e outros com idades falsas estariam a representar estas equipas
em competições oficiais. Um desses jogadores, um guineense ao serviço
do União Povoense, tinha mesmo dois cartões emitidos pela FPF com a
mesma fotografia, mas com nomes e datas de nascimento diferentes. Fonte
da FPF garante ter-se tratado de um erro informático do organismo,
completamente alheio ao clube.
O presidente do Povoense, António Fonseca, também diz não ter
jogadores ilegais e orgulha-se de ter ajudado alguns guineenses a
singrar: “Dois jogadores que passaram por cá estão no futebol inglês. O
Jorginho foi para o Manchester City, e o Toni Silva está no Liverpool”. O
dirigente diz haver no futebol português um preconceito em relação à
legalidade dos jogadores oriundos de África, mas “ninguém fala sobre
outras nacionalidades”: “Então e os chineses? Ainda há pouco tempo
vieram aqui oferecer-me cinco chineses. Sem documentos, sem nada. Até
pagavam para que eles jogassem aqui. Disse-lhes logo que não. Chineses
só se forem os do Futre”, ironiza. “Mas temos defrontado algumas equipas
com três e quatro chineses no plantel principal”. Joaquim Evangelista
confirma o aumento de jogadores asiáticos no futebol amador: “Africanos e
sul-americanos estão em maior número, embora comece a haver clubes que
aceitam muitos chineses”.
Casas sem condições
Os estrangeiros que actuam nas divisões secundárias do futebol
português habitam muitas vezes em casas sem condições, denuncia João
Diogo Manteigas. “Ninguém sabe a quem pertencem essas casas. Chegam a
albergar 10 e 12 miúdos de diferentes países. Vieram para jogar futebol e
estão ali à espera que os agentes os levem para algum lado”.
Ailton Pereira foca outro problema: “Já vi jogadores que vão para um
clube e são postos num quarto onde se entra de frente e sai-se de
costas. Nem têm uma cadeira para se sentar. Vão treinar ou jogar, comem e
passam o resto do dia deitados. Claro que depois não podem ter
rendimento desportivo”. João Diogo Manteigas reforça que nenhum jogador
português aceitaria esta situação: “Quer um salário, uma casa em
condições. Por isso os clubes preferem estrangeiros vindos de países
pobres. São mais baratos. Alguns nem sequer recebem dinheiro. Têm apenas
estadia e alimentação”.
Uma fonte anónima garante conhecer casas, na zona Centro, onde chegam
a estar mais de 30 menores de diferentes países: “Os colchões estão
espalhados pelo chão e por vezes nem sequer há água e electricidade.
Lavam-se com água engarrafada e têm velas e lanternas”. Noutras casas, a
situação não é tão grave, mas está longe de ser a ideal: “Têm água e
gás, uma panela e um tacho para cozinhar. Nada mais. Alimentam-se,
essencialmente, de comida enlatada”.
Passaportes falsificados e subornos
Ailton Pereira acredita que os clubes também contribuem para esquemas
de falsificação de documentos: “Se um jogador vem para cá oriundo de um
clube guineense, estamos a falar de uma transferência internacional.
Para poder jogar em Portugal, o certificado custa 2 mil euros porque era
federado na Guiné. Mas o clube português e o agente não vão querer
pagar. Então o que se faz? Forja-se a documentação”, explica. “Ou
cria-se de novo”, completa Manteigas. “Depois aparecem aqui jogadores
com 25 anos a dizer que têm 16 anos”, sublinha Ailton. “Isto sempre
aconteceu e continua a acontecer. É uma forma de evitar o pagamento
daquele valor. Altera-se o nome e é como se fosse a primeira inscrição.
Em vez de se chamar João, chama-se António. Ou seja, também não há
interesse dos clubes portugueses em seguir as normas e ressarcir os
clubes guineenses”.
Os subornos aos dirigentes dos clubes de origem são outra forma de
evitar o pagamento dos direitos de compensação: “Qualquer clube, em
qualquer parte do mundo, tenta sempre não pagar esses direitos ao clube
de formação. E isso é fácil de conseguir. Basta ter uma carta do outro
clube a dizer que abdica dos direitos de formação”, avança João Diogo
Manteigas. “Os dirigentes do clube de formação aceitam abdicar desse
direito porque vão buscar o dinheiro de outra forma. São subornados pelo
clube de destino e aceitam. Não estamos a falar de subornos muito
elevados, mas para a Guiné é muito dinheiro”.
Onde estão os ilegais?
Uma fonte ligada ao futebol de formação de um clube português
considera que “o problema é a ausência de punição a agentes e clubes que
têm estas práticas”. “Alguns falsos agentes que abandonam jogadores ou
que ajudam a falsificar passaportes estão identificados, mas ninguém faz
nada. O mesmo se passa com os clubes que albergam jogadores ilegais. A
Federação devia multá-los ou mesmo proibi-los de participar nas
competições. Nunca o faz. Estamos a falar de um negócio que 'lava' as
mãos a muita gente. De repente aparece um jogador que vale milhões e
fica tudo bem. Os outros não interessam. São tratados como mercadoria
estragada”.
De forma a reduzir o número de jogadores ilegais inscritos em
competições nacionais, a FPF vai introduzir novas regras na legalização a
partir de Abril. Os jogadores passam a ser obrigados a apresentar
vistos de permanência para serem inscritos a cada nova época. Para João
Diogo Manteigas, a medida peca por tardia: “Esta nova regulamentação
visa cumprir uma lei de 2012. A partir de agora haverá um maior
controlo, mas deixo uma pergunta: 'Onde andam os jogadores que ficaram
em situação ilegal desde 2012?'“. Muitos deles, sem dinheiro, acabam por
enveredar por actividades ilícitas, como o tráfico de droga. “Cocaína e
haxixe, na maior parte das vezes, através de contactos com guineenses e
cabo-verdianos que já estão em Portugal há algum tempo”, lembra outra
fonte.
Ailton Pereira conhece casos em que o sonho do futebol deu lugar a
práticas ilegais: “Às vezes falo com jogadores que vieram para Portugal
na mesma altura que eu vim, mas não tiveram sorte e acabaram sem clube.
Muitos deles entraram por caminhos menos aconselháveis. Dizem-me: 'Vim
para cá para jogar futebol e agora a minha vida é isto'“.
Sem comentários:
Enviar um comentário