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Joseph Pulitzer

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Produzir riqueza, ricos ou doutores ??

"(...)Escrevi uma vez que a maior desgraça de um país pobre é que, em vez de produzir riqueza, vai produzindo ricos. Poderia hoje acrescentar que outro problema das nações pobres é que, em vez de produzirem conhecimento, produzem doutores (até eu agora já fui promovido..,) . Em vez de promover pesquisa, emitem diplomas.(...)"

Mia Couto


'O livro que era uma casa, a casa que era um país'  Mia Couto


“Todos os povos amam a Paz. Os que passaram por uma guerra sabem que não existe valor mais precioso. Sabem que a Paz é um outro nome da própria Vida. Vivemos desde há meses sob a permanente ameaça do regresso à guerra. Os que assim ameaçam devem saber que aquele que está a ser ameaçado não é apenas um governo. O ameaçado é todo um povo, toda uma nação…”

“Pode não ser este o momento, pode não ser este o lugar. Mas é preciso que os donos das armas escutem o seguinte: não nos usem, a nós, cidadãos de Paz, como um meio de troca. Não nos usem como carne para canhão. Diz o provérbio que “sob os pés dos elefantes quem sofre é o capim”. Mas nós não somos capim. Merece-mos todo o respeito, merecemos viver sem medo. Quem quiser fazer política que faça política. Mas não aponte uma arma contra o futuro dos nossos filhos. É isto que queria dizer, antes de dizer qualquer outra coisa…”

“…É difícil imaginar quanto, mesmo ouvindo, podemos ser surdos. Selectivamente surdos. Escutamos os que nos são próximos, escutamos os que nos obedecem, escutamos o que nos agrada ouvir. Escutamos os do nosso partido, escutamos sobre-tudo quem não nos critica. Tudo o resto não existe, tudo o resto é mentira, tudo o resto é calúnia. Tudo o resto é proferido pelos “outros”. E é quase um paradoxo: porque se ocupam páginas inteiras dos jornais a dizer que os “Outros” não devem ser ouvidos. Gastam-se horas de programação radiofónica e televisiva para dizer que os outros não disseram nada. Esses “outros” que querem questionar o que fazemos, esses outros são “estranhos”, a caminho mesmo de serem “estrangeiros”. A verdade, porém, é que ninguém pode anular a existência desses “outros”. Ninguém pode negar que são moçambicanos. Ninguém pode saber se têm razão se não deixar-mos que falem livremente. Esta é a grande lição do Presidente Nyussi que entendeu reconciliar uma nação apartada de si mesma. É ele que nos lembra que esses que dizem “não”, são da mesma família dos que dizem “sim”. 
 
Esta é uma mesma família que dispõe de uma única casa. Não existe outro lugar, não existe outro destino senão este que dá pelo nome de Moçambique. Digo tudo isto sem qualquer embaraço. Porque todos nós, a começar por si, Senhor Presidente, queremos fugir da prática da bajulação. Com a sua atitude de abertura e simplicidade, o Presidente sugere uma outra relação, mais próxima, mais verdadeira. Apesar de tudo, é fácil imaginar que junto a Vossa Excelência já se criou um cortejo de aduladores. Felizmente, veio da sua parte um sinal de alerta: assim que tomou posse, o Presidente Filipe Nyussi começou a receber gente que não batia palmas, gente que tinha interrogações e levantava críticas. Os seus ministros estão a fazer o mesmo, estão a escutar os que pensam diferente, estão a sentar-se com os que deixaram de ser ministros, estão a aprender desses outros que estavam condenados à condição de já terem sido alguém. Parece pouco perante os gigantescos problemas que enfrentamos. Mas esta forma de lidar com as pessoas pode sugerir uma outra forma de lidar com os grandes os desafios...”

Por tudo isto queria muito dizer--lhe: muito obrigado, Senhor Presidente. Muito obrigado por nos ter de-volvido a nossa dimensão de família. Muito obrigado por ter reabilitado o nosso estatuto de moradores na mesma casa. Durante muito tempo fomos conduzidos a construir fronteiras que nos separavam em pequenas nações dentro da grande Nação moçambicana. Durante muito tempo houve quem sugerisse que havia categorias de moçambicanos, uns mais autênticos que os outros. Ainda hoje sobrevive em alguns esse olhar de polícia de identidades. Ainda hoje há quem avalie os outros pela cor da sua pele, pela cor da tribo, pela cor do seu partido. Ainda hoje, há os que, em lugar de discutir ideias, atacam pessoas. E ainda prevalecem os que, em lugar de procurar soluções, procuram modos de esconder os problemas. Toda esta cosmética foi sendo feita em nome da unidade e do patriotismo. Toda esta encenação de normalidade é uma herança que pedia uma resposta firme. Esta resposta foi trazida por si. Sem grandes proclamações, mas de um modo firme e continuado. Conhece-mos hoje essa sua mensagem: pode-mos ter os recursos que tivermos. Não disso é tão promissor como o nosso património humano feito de tanta gente tão diversa.

Magnífico Reitor, Professor Doutor Lourenço do Rosário

… “ Traduzindo as suas palavras na linguagem da oralidade que Professor Rosário tão bem conhece o resultado poderia ser assim: é que para uns, a política é uma panela. É preciso comer muito e rápido porque a colher é muito disputada e a refeição pode durar pouco. Para outros, contudo, a política ainda é a nobre arte de servir os outros, a política ainda é a missão de colocar acima de tudo os interesses de todos. Possivelmente quem tanto reclama contra a partidarização não está contra o princípio em si mesmo. Quer, sim, partidarizar a dois. Não me importa o nome dos partidos. A minha questão não é tanto de ordem política que, para isso, pouca vocação me resta. É uma objecção de natureza moral. Importa-me como cidadão que persista, em alguns dirigentes moçambicanos, a ideia de que Moçambique é um quintal privado. Um quintal cujo destino é ser parcelado, conforme interesses e conveniências…”

… “ Irei falar sobre a erosão dos valores morais e de como pode um escritor
ajudar na reabilitação do tecido moral da sociedade. Escolhi este tema porque não conheço ninguém que não se lamente da perda de valores morais. Este é um assunto sobre o qual temos um imediato consenso nacional. Todos estão de acordo, mesmo os que nunca tiveram nenhum valor moral. E até os que tiram vantagem da imoralidade, até esses, depois de lucrarem com a ausência de regras, se queixam que é preciso travar a falta de decoro.
 
Um dos caminhos que nos pode ajudar a resgatar essa moral perdida pode ser o da literatura. Refiro-me à literatura como a arte de contar e escutar histórias. Falo por mim: as grandes lições de ética que aprendi vieram vestidas de histórias, de lendas, de fábulas. Não estou aqui a inventar coisa nenhuma. Este é o mecanismo mais eficiente e mais antigo de reprodução da moralidade. Em todos os continentes, em todas as gerações, os mais velhos inventaram narrativas para encantar os mais novos. E por via desse encantamento passavam não apenas sabedoria mas uma ideia de decoro, de decência, de respeito e de generosidade.
 
Há certa de trinta anos atrás Graça Machel - que era então Ministra da Educação - convocou um grupo de escritores para lhes dizer que estava preocupada. Estou preocupada, disse ela, estamos a ensinar nas escolas valores abstractos como o espírito revolucionário, do patriotismo, o internacionalismo. Mas não estamos a ensinar valores mais básicos como a amizade, a lealdade, a generosidade, o ser fiel e cumpridor da palavra, o ser solidário com os outros. E ela pediu-nos que escrevêssemos histórias que seriam publicadas nos livros de ensino. Graça Machel tinha a convicção que uma boa história, uma história sedutora, é mais eficiente do que qualquer texto doutrinário.

Falei-vos há pouco dessa proposta de hino chamada Pátria de Heróis que foi entoada como Pátria de Arroz. Lembro-me que, na altura, até gostei do equívoco dos cantores, porque me vieram à memória as palavras de Albert Camus quando recordava a Argélia onde ele nasceu e dizia: “Pobre do país que precisa de heróis”. Naquela altura achei que talvez fosse preferível uma pátria de arroz a uma pátria de heróis. A verdade é que a nossa epopeia nacional foi apropriada por um discurso vazio de exaltação patrioteira.

O resultado é que as nossas ruas e praças estão recheadas de nomes de heróis. A esses heróis, porém, falta-lhes rosto, falta-lhe voz, falta-lhes vida. Herdámos uma história heróica de heróis sem história. Só temos a História com H maiúsculo. Faltam-nos as pequenas histórias, falta-nos os pequenos episódios que seduzem a imaginação e sustentam a memória. Uma certa narrativa quer ainda provar que vale a pena mentir, que vale a pena roubar, e que vale a pena tudo menos ser honesto e trabalhar. Aliás, a palavra “trabalho” suscita fortíssimas alergias. Pode-se ter negócios, pode-se ter projectos. Mas ter um trabalho isso é que nunca. Que o trabalho leva muito tempo e, além disso, dá muito trabalho. Mas, no fundo, todos sabemos: enriquecer rápido e sem esforço só pode ser feito de uma maneira: roubando, vigarizando, corrompendo e sendo corrompido. Não existe, no mundo, inteiro, uma outra receita.

Preocupa-nos que os nossos estudantes entrem para universidade com fraco desempenho académico. Pois eu acho mais preocupante ainda que os nossos jovens cresçam sem referências morais. Estamos empenhados em assuntos como o empreendedorismo como se todos os nossos filhos estivessem destinados a serem empresários. Ocupamos em cursos de liderança como se a próxima geração fosse toda destinada a criar políticos e líderes. Não vejo muito interesse em preparar os nossos filhos em serem simplesmente boas pessoas, bons cidadãos do seu país, bons cidadãos do mundo.

Escrevi uma vez que a maior desgraça de um país pobre é que, em vez de produzir riqueza, vai produzindo ricos. Poderia hoje acrescentar que outro problema das nações pobres é que, em vez de produzirem conhecimento, produzem doutores (até eu agora já fui promovido..,) . Em vez de promover pesquisa, emitem diplomas. Outra desgraça de uma nação pobre é o modelo único de sucesso que vendem às novas gerações. E esse modelo está bem patente nos vídeo-clips que passam na nossa televisão: um jovem rico e de maus modos, rodeado de carros de luxo e de meninas fáceis, um jovem que pensa que é americano, um jovem que odeia os pobres porque eles lhes fazem lembrar a sua própria origem.

É preciso remar contra toda essa corrente. É preciso mostrar que vale a pena ser honesto. É preciso criar histórias em que o vencedor não é o mais poderoso. Histórias em que quem foi escolhido não foi o mais arrogante mas o mais tolerante, aquele que mais escuta os outros. Histórias em que o herói não é o lambe-botas, nem o chico-esperto. Talvez essa histórias sejam o tal patrocínio que faltou ao nosso jovem funcionário.

Tudo isto é urgente e imperioso. Porque nós estamos na eminência de desacreditar de nós mesmos. Todos nós já escutámos de alguém a seguinte desistência: não vale a pena, nós somos assim. Nós somos cabritos à espera de ser amarrados num qualquer pasto. Estamos a aprender a desqualificar-mo-nos. Estamos a replicar o racismo que outros inventaram para nos despromover como um povo de qualidade moral inferior.”

Extractos da intervenção de Mia Couto, no acto de outorga do título de Doutor Honoris Causa, que lhe foi entregue pela Universidade moçambicana “A Politécnica” a 2 de Setembro corrente

(Publicado em Novo Jornal)

(por Diana Andringa)
 
 

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