Na Guiné-Bissau, as crianças morrem por beber água contaminada com fezes. Num país em que quatro em cada cinco pessoas não têm acesso a redes de distribuição de água, proliferam as doenças hídricas, a maioria mortais.
A malária é a principal causa de morte, sobretudo em crianças - as mais vulneráveis -, mas há também doenças gastrointestinais (diarreias) e doenças do foro respiratório, resultantes da falta de higiene. E 90% dos casos de diarreia acontecem em crianças até aos 15 anos, sobretudo em Junho, no início da época das chuvas. As raparigas são mais afectadas do que os rapazes - e uma em cinco crianças morre da doença.
“Esta realidade não tem sido percebida quer pelas ONG que
operam no país, quer pela UNICEF, quer pela Organização Mundial de
Saúde, que continuam a 'tapar buracos', em vez de ir ao fundo da
questão”, denuncia Adriano Bordalo e Sá, que investigou durante sete
anos as condições de acesso a água das populações na Guiné-Bissau. O
professor de Hidrobiologia no Instituto de Ciências Biomédicas Abel
Salazar da Universidade do Porto acusa as organizações internacionais de
promoverem sobretudo “ajuda de emergência” e não resolverem os
problemas em si.
Na sua investigação, desenvolvida no país entre
2006 e 2013 em mais de 300 poços, Adriano Bordalo e Sá percebeu que um
dos principais problemas a resolver é a elevada contaminação dos poços,
onde as pessoas, sobretudo mulheres e crianças, vão buscar água - e que
considera serem “presentes envenenados” das organizações internacionais.
“Oficialmente, 72% da população da Guiné tem acesso a água
melhorada, mas isso refere-se apenas à infra-estrutura. Ou seja,
considera-se melhorada quando o tambor metálico que envolve o poço é
substituído por um murete em tijolo e tem à volta uma plataforma em
cimento. Mas, incrivelmente, não são feitas quaisquer análises à água”,
explica o investigador.
Água ácida
Por
outro lado, a água tem níveis de acidez bastante elevados. “Na Guiné, a
terra vermelha está impregnada de sulfureto de ferro que, em contacto
com a chuva, se transforma em ácido sulfúrico e isso torna a água
extremamente ácida”, adianta. Mas não só. Há ainda os níveis de
contaminação fecal: 80% destes poços estão contaminados.
A
contaminação começa com a retirada da água dos poços com baldes, puxados
por cordas. Baldes que estiveram no chão, em contacto com as fezes que
proliferam junto aos poços cavados à mão. “Como a água está a uma
temperatura de 30 graus, as bactérias desenvolvem-se e multiplicam-se”,
diz Bordalo Sá.
Também é comum haver latrinas e terrenos com
animais junto a estas infra-estruturas: “Quando chove, estes
contaminantes infiltram-se na terra até aos 20 metros de profundidade”.
Precisamente a profundidade que têm os poços. E há ainda o transporte
lateral de contaminantes, uma vez que os aquíferos estão todos ligados.
As
crianças até aos 15 anos são as mais afectadas pelas doenças
relacionadas com a falta de água potável - elas, além das mulheres, têm a
responsabilidade de ir buscar água para a família.
Furos de profundidade
A
solução seria abrir, em vez de poços, furos pelo país. “Os furos são
bastante mais profundos. Atingem os 600 metros e, por isso, chegam aos
aquíferos de profundidade”, que não estão contaminados e cuja água é
alcalina. Estão protegidos por argila e, por terem uma placa sedimentar
com dezenas de metros, composta por cascas de bivalves, contêm carbonato
de cálcio que protege os dentes. Mas “estes furos, equipados com bombas
solares, são mais caros do que os poços. As organizações não investem
neles”, nota o hidrobiólogo.
Quando a água não vem contaminada do
poço, acaba por ficar em casa. Num país em que uma família soma em
média 13 elementos, cada pessoa consome 21 litros de água por dia (em
Portugal, por exemplo, essa média ronda os 120 litros e, em África, os
50 litros).
Em casa, o líquido azul é mantido em potes de barro
para arrefecer. Mas cada elemento da família mergulha a caneca em inox
nesse pote, contaminando a água. O arroz, base da alimentação no país, é
cozinhado com essa água, resultando muitas vezes em doenças como a
cólera. Até porque o arroz é comido à mão por todos. E, nota Adriano Sá,
a população considera “a cólera obra do diabo e não a relaciona com o
consumo de água contaminada”.
Outra das questões levantadas pelo
estudo do professor de Hidrobiologia é a relação entre o período das
chuvas, sobretudo Agosto, e o pico de doenças como a malária, uma vez
que o mosquito da doença eclode na água.
Para piorar a situação, a
maioria dos hospitais distritais, mesmo aqueles que realizam partos e
pequenas cirurgias, não têm água canalizada. A Guiné-Bissau é um dos
países com as mais elevadas taxas de mortalidade de grávidas e
parturientes do mundo. No que diz respeito à mortalidade infantil, o
cenário é aterrador: a taxa de mortalidade infantil na Guiné-Bissau é de
120 a 243 por cada mil (consoante os critérios). Noutro PALOP,
Moçambique, a mesma taxa é de 77 por cada mil. Em Portugal é 3 por mil.
Falta de acesso ao sistema de saúde
O
sistema de saúde, num país em que apenas 1% do PIB é investido nesse
sector, não é favorável. Até recentemente existiam apenas cem médicos em
todo o país, concentrados sobretudo em Bissau. Há cerca de dois anos,
saíram, para o interior, mais 88, formados por médicos de Cuba, mas os
meios continuam a ser escassos e não há ambulâncias.
E na Guiné,
onde a maioria da população ganha cerca de 80 cêntimos por mês, há o
princípio de que a saúde deve ser paga, até mesmo pelas crianças. “Em
1987, na sequência da guerra civil que destruiu quase todas as
infra-estruturas do país, a UNICEF convenceu a OMS e o FMI a ajudar o
país e criaram essa regra, que acabou por afastar a maioria das pessoas
do sistema de saúde”, lamenta Bordalo Sá.
(Sónia Balasteiro)
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