Alice Mabota, presidente da Liga dos Direitos Humanos (LDH), não passa despercebida e dispensa quaisquer apresentações. Tem cara de poucos amigos e não é fácil arrancar-lhe sorrisos. Esta mulher que diz ter sido militante da Frelimo e que rejeitou várias oportunidades de emprego na Função Pública - algumas das quais teriam sido um trampolim para ocupar cargos políticos ou de direcção nas instituições do Estado com direito a benesses de que certos governantes se beneficiam para a sua prol - não consente humilhações e maus-tratos.
Na esfera pública é
conhecida por não ter papas na língua e pela frontalidade com que trava
batalhas pela legalidade de gente desfavorecida, sobretudo.
Não se
sabe em que ano Maria Alice Mabota (de apelido tradicional Mavota)
nasceu. Mas convencionou-se que ela veio ao mundo a 08 de Abril de 1949
na Missão José, actualmente Hospital Geral José Macamo, o que leva a
crer que ela pode ter nascido antes ou depois desta data. A dificuldade
de identificar o seu ano de nascimento prende-se com o facto de que
naquela época ser difícil os pais registarem os filhos, mas, também,
diga-se, havia desleixo.
Ela conta que nessa data, e, eventualmente, até hoje, a idade de um
menor era determinada “pela sua fisionomia e altura” ou por via de
outras mulheres que tivessem tido filhos na mesma ocasião. Foi assim com
Alice. “Cresci, até uma determinada idade, que também não sei qual é,
em casa do meu pai, no quilómetro 15”, vulgo “Machava 15”.
A
história de vida e obra desta senhora, que falava ao @Verdade por
ocasião do Dia Internacional da Mulher, celebrado no último domingo
(08), representa fielmente o trabalho que ela persegue. Engana-se quem
julga que ela teve uma vida alegre e faustosa. A par do que sucede com
muitas crianças, no campo e na cidade, ela ingressou na escola muito
tarde e não se lembra com que idade.
Na sua óptica, a igualdade de direitos entre homens e mulheres em
Moçambique é uma “tese” grafada na Constituição mas na prática não se
materializa. O sexo masculino continua no centro das decisões. A marcha
com vista a inverter o cenário já foi iniciada mas o caminho a percorrer
ainda é grande.
A nossa interlocutora divide as mulheres em três
grupos: o primeiro, das que têm poder para mudar o mundo mas não o fazem
porque está ligado “à politiquice.” O segundo, é das que se fazem
passar por domésticas assumidas, ficam em casa acomodadas “de tal sorte
que sofrem violência psicológica”, por exemplo, porque querem ganhar o
pão que o marido lhes dá.
O último grupo é das mulheres sem independência económica, para as
quais
Alice aconselha a lutarem pela vida com dignidade sem precisarem
de “vender o corpo" como fazem algumas. Devem prosperar com trabalho
honesto e verticalidade. Aliás, segundo ela, o que falta é determinação.
“Temos de alcançar a independência em prol das futuras gerações que são
as nossas filhas. Senão fizermos isso, vamos amarrar-nos e às nossas
filhas”.
A primeira instituição de ensino que Alice frequentou foi
a Missão de São Roque de Matutuine, província de Maputo, onde fez a
pré-primária e a primeira classe em simultâneo para recuperar o tempo
perdido. A 3a classe rudimentar e a elementar foram concluídas no mesmo
ano. Quando ela terminou a 4a classe voltou a ficar fora da escola
porque não pôde continuar os estudos.
Alice não fala com precisão sobre as coisas que se passaram na sua
vida porque a memória não o permite. Para além de Mchava 15, ele viveu
na Catembe, em casa de um tio materno que a criou a sua mãe, a qual
perdera os pais precocemente.
Ela conta que foi “arrancada” do pai
e passou a viver com a família materna como forma de obrigar o seu
progenitor a lobolar a mãe, o que não aconteceu porque, por alguma
razão, o pai passou a residir na África do Sul até à sua morte.
Se
o progenitor dela tivesse tivesse seguido as normas estatuídas pela
tradição, hoje chamar-se-ia Alice Mpfumu. Ao longo do tempo as coisas
mudaram: actualmente existem muitos pais que não assumem a paternidade
dos filhos mas este levam os seus sobrenomes.
“Uma das coisas que a minha mãe não gosta de discutir comigo é a
origem deste nome [Mpfumu]. Eu lembro-me de que numa determinada idade
me chamavam Alice da Conceição”, mas o nome que vincou foi Maria Alice
Mabota, o qual foi adoptado através de um baptismo na Catembe, de onde,
em 1966, veio quando passou a viver no Chamanculo, em casa da irmã do
seu pai, com a qual aprendeu a falar português, a cuidar da higiene
pessoal e colectiva e a cozinhar.
Certo dia, entre 1967/68, a sua
mãe, que se encontrava na África do Sul ao serviço da Frelimo regressou a
Maputo a convite da sua prima Janete Maximiano, a qual disse que para
Alice prosperar na vida precisava de voltar a estudar. A jovem passou a
frequentar as aulas à noite e durante o dia trabalhava.
O seu primeiro emprego foi nas instalações onde hoje funcionava o
Millennium Bim, na Avenida do Trabalho, e limpava os sanitários das
senhoras.
“Imagine, as casas de banho de senhoras de uma fábrica,
não é brincadeira: urinam no chão, vomitam e defecam de qualquer
maneira. Eu chegava a casa e vomitava”. Alice diz ter informado a sua
mãe de que era faxineira e recebeu dela muito apoio. Volvidos alguns
meses, a jovem arranjou outros empregos, sempre relacionados com a
limpeza, até que, em 1973, foi admitida no Instituto de Investigação
Agronómica, no Ministério da Agricultura, do qual se desvinculou em 1980
por causa de uma briga com o secretário de Estado. Foi seleccionada com
vista a integrar os Serviços de Informação e Segurança do Estado (SISE)
mas recusou a vaga “porque não queria ser espiã”.
Alice ficou em
casa a vender bolos e, finalmente, pôde continuar a frequentar a escola.
Concluiu a 7a classe na "Francisco Manyanga" e a 9a classe na "Josina
Machel". Nesta, ela foi colega de turma de Maria da Luz Guebuza, esposa
do antigo Presidente da República, Armando Guebuza. Quando teve nível
para frequentar o ensino superior a nossa entrevistada fez muito esforço
para estudar Medicina e, apesar de ter sido autorizada, abandonou o
curso por medo de ver cadáveres. Ficou igualmente aprovada num concurso
para estudar relações internacionais "mas eu não dominava o francês nem o
inglês".
Na ocasião, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros e
Cooperação, Joaquim Chissano, propôs que Alice fosse a Nova Iorque, nos
Estados Unidos da América, estudar secretariado mas ela negou. Segundo
as suas palavras, recusou-se também a trabalhar com Mário Machungo, na
altura Primeiro-Ministro, e continuou a vender os seus bolos enquando
dava aulas de língua portuguesa na "Francisco Manyanga", onde David
Simango, actual edil de Maputo, era director.
Contudo, a
"dama-de-ferrro", alcunha com que é conhecida na praça por causa da sua
defesa aguerrida dos direitos humanos, abdicou de todas as ocupações que
tinha na altura e passou a fazer parte do Instituto de Patrocínio e
Assistência Jurídica (IPAJ) quando ela aceitou que os alunos do segundo
ano de Direito podiam ser assistentes jurídicos. Aliás, ela trabalhou
também na Administração do Parque Imobiliário do Estado (APIE).
Foi
assim que se notabilizou a sua vocação pela adocacia dos direitos
humanos, por se ter apercebido de que havia tamanha ilegalidade e
injustiça contra o povo em Moçambique. Na mesma ocasião, ela retomou o
seu negócio mas para se dedicar ao catering.
Um grande salto na vida de Alice acontece em 1993, quando ela
participou na Conferência de Viena, durante 45 dias. “Estudei o
movimento dos direitos humanos”. Quando regressou ao país "mandou
passear" o emprego e a assessoria que prestava em várias empresas para
formar a Liga do Direitos Humanos. Para o efeito, ela teve a ajuda de
Fernando Gomes, activista da Guiné Bissau, e um angolano cuja associação
não teve sucesso por falta de gente aguerrida.
Quando fala da
história daquele organismo, a nossa entrevistada exalta-se e fica
revoltada em resultado da existência de um grupo de colegas de trabalho
que pretende derrubá-la. “É isto que as pessoas não entendem e eu
continuo a dizer que da Liga não é o associativismo de meia-tigela que
me vai remover”, porque, acrescenta ela, o que a instituição se propôs
fazer ainda não foi cabalmente cumprido.
A antiga militante activa da Frelimo explicou que trabalhou bastante
tempo na mobilização do povo para o alcance da liberdade e conquista do
direito à terra; por isso, fica consternada quando o que chama de "novos
colonos" se apoderam de várias parcelas de talhões com o aval do
Governo do dia.
No que diz respeito à relação das organizações da
sociedade civil com o Executivo, Alice considera que há gente sensível a
causas dos direitos humanos, tal como os juízes Augusto Paulino,
Joaquim Madeira, entre outros, cuja lista é extensa e a quem agradece pelo
apoio no seu trabalho. Benvinda Levi, por exemplo, foi igualmente muito
prestativa para a Liga e percebia o que se passava com uma mulher
quando esta movia um processo sobre a violência doméstica ou
reivindicava uma casa.
Entretanto, a nossa interlocutora, que afirma já ter sofrido várias
ameaças por parte do regime, sobretudo por pessoas do partido no poder
devido à sua actividade, condena a vida hostil a que tem sido sujeita
por falta de percepção em relação à finalidade do seu trabalho
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