O autoritarismo é um modo de exercer o poder, mas é também um ideário, uma espécie de regime de conhecimento. Como visão de mundo, ele é fechado ao outro. Ele opera pelo discurso e pela prática sempre bem engrenadas que se organizam ao modo de uma grande falácia, ao modo de um imperativo de alto impacto performativo: o outro não existe e, se existe, deve ser eliminado. Ora, dizemos “regime de conhecimento” pensando na operação mental da negação do outro, mas o conhecimento como gesto na direcção do outro é justamente o que é destruído pelo autoritarismo que se basta como máscara sem rosto do conhecimento transformado em ideologia, ou seja, em ofuscamento da verdade social.
Tudo o que não presta
Nada do que possamos chamar de
conhecimento pode ser concebido fora de seu registo ético-político. Se
o registo do conhecimento funciona pela negação do outro, o
conhecimento nega a si mesmo. Sem o outro, o conhecimento morre. O
enrijecimento é uma prova da morte do conhecimento que se torna cegueira
ideológica. A ideologia é a redução do conhecimento à fachada, como que
sua máscara mortuária.
O conhecimento, que deveria ser um processo de
encontro e disposição para a alterabilidade que o representa, sucumbe à sua
própria negação. Daí a impressão que temos de que uma personalidade
autoritária é, também, burra, pois ela não consegue entender o outro e
nada que esteja em seu circuito.
A propaganda é o método que sustenta a
negação do outro. A propaganda fascista, a propaganda do ódio, que prega
a intolerância, que afirma coisas tão estarrecedoras, como fez o famoso
deputado Heinze ao dizer que “quilombolas, índios, gays, lésbicas”,
são “tudo o que não presta”, é a destruição do conhecimento, como
relação com o outro, que está na base do desejo de democracia. Auto-afirmação de ignorância, assinatura de estupidez. Mas é, ao mesmo
tempo, a destruição da política por um discurso antipolítico de um
agente que deveria ser político, mas que está, contudo, voltado para o
instinto de morte antipolítico.
Em casos como o desse discurso podemos
falar em uma prática discursiva “tanática”, exemplo perfeito da
“tanatopolítica” contemporânea. Típico discurso fascista. Mas a quem
esse discurso convence? Eis uma questão que precisamos nos colocar, até
para poder combater o mesmo discurso ou para criar alternativas para a
sobrevivência de uma política democrática, para uma política melhor,
para um poder da diferença, um poder compreensivo que acolha a tradição
dos oprimidos.
Quem fala o que fala, sem nenhuma
responsabilidade, por um lado deve ser legalmente questionado, por
outro, é preciso colocar em jogo a questão das condições de
possibilidade que, na cultura, fazem surgir falas como a do deputado
citado. Como alguém pode se autorizar ao discurso fascista que é
fomentado por sua propaganda? De outro, quem é suscetível à esta
propaganda? Se a propaganda fascista que é um tipo de discurso – e uma
verdadeira metodologia de alienação social – continuar vencendo, não
teremos futuro. Em que direcção devemos agir diante desse estado de
coisas?
Experimentum Crucis
É neste contexto que podemos nos colocar
a questão da qual proponho que façamos um “experimentum crucis”
teórico-prático: como conversar com um fascista? Digo isso pensando que
podemos avançar para além do discurso da denúncia e da queixa. Quem se
sente atacado nem sempre deve contentar-se com a posição de vítima.
Colocar-se na posição de vítima é um perigo e é muito diferente de ser
sujeito de direitos. É uma péssima estratégia em tempos em que o poder
está em mãos perversas que adoram imolar vítimas no altar do Estado e do
Capital.
A vítima, dizia um sábio alemão que
lutou contra o fascismo, sempre desperta o desejo de proscrever.
Empoderamento é a saída. Contra a posição da vítima, podemos pensar na
posição do guerreiro subtil, aquele que desafia o poder desde a sua
interioridade, desde seu núcleo duro, para desmontá-lo estrategicamente.
Neste ponto, em bases subtilíssimas, podemos falar de diálogo e a
questão “como conversar com um fascista?” se torna um emblema do desafio
democrático.
Quem luta por direitos sabe que a
conversar é impossível. Mas da possibilidade de perfurar a blindagem
fascista depende o recuo do fascismo, infelizmente, a cada dia renovado
pelo fomento da propaganda fascista dos políticos antipolíticos e dos
meios de comunicação de massa. O diálogo é, neste caso, a “metodologia
democrática” básica que poderia operar em situações privadas ou
públicas. O diálogo parece impotente diante do ódio. Ele parece delicado
demais. Mas o diálogo em si mesmo é um desafio. Um desafio
micropolítico, cuja colocação em cena pode nos ajudar a pensar no que
fazer, no como agir em escala macro-política.
Estamos no terreno de uma estratégia teórico-prática. Esse desafio tem três tempos:
1- O tempo do outro, tempo apavorante
enquanto o outro é sempre o desconhecido, aquele que ameaça em algum
sentido a “minha” ordem;
2- O tempo da abertura de si que
implica perceber-se como um outro, o que só se dá ao nível do imaginário
e do discernimento, pois jamais teremos acesso ao sentir e pensar do
outro, assim como ele não terá do nosso, senão pela exposição cuidadosa
do que sentimentos e pensamos;
3- O tempo interminável, a saber, o
da permanência na experiência do diálogo, ou seja, a manutenção
qualificada da metodologia. Em outras palavras, permanecer no lugar do
diálogo como insistência no encontro. Não ceder ao ódio, permanecer
tentando entender e, ao mesmo tempo, oferecer certo desentendimento como
oportunidade ao outro de entender, ele mesmo, a diferença para a qual
está fechado. Nesse sentido, o diálogo é resistência.
O diálogo não é a conversa entre iguais,
não é apenas uma fala complementar, mas a conversa real e concreta
entre diferenças que evoluem na busca do conhecimento e da acção que dele
deriva.
Para que o diálogo ocorra é preciso
haver isso que chamamos de abertura ao outro. A abertura existe na
mentalidade democrática, ela está aberta ao outro em função de
experiências cognitivas e culturais. A abertura não existe no caso de
uma personalidade autoritária, fechada ao outro também por motivos
cognitivos e culturais, motivos que incidem na formação da experiência
pessoal e colectiva.
A conversa com a alteridade que vai além
dos argumentos, tem um ponto decisivo no âmbito afectivo. Não do
sentimento apenas, mas do modo como nos “afectamos”, no sentido do que
fazemos uns com os outros. Se o democrata está aberto ao outro, seu
grande desafio pode ser mostrar como produzir essa abertura ao outro em
nossa sociedade. Daí o sentido crucial do lema “como conversar com um
fascista?” que se torna, na contra-mão, um imperativo experimental
democrático que precisa ser antecipado na conduta de quem quer produzir
democracia hoje.
Não podemos apenas nos queixar que essa
abertura não existe, mas pensar em como deve ser produzida. Em outras
palavras, a questão pode ser a de como apresentar a experiência do outro
a quem ainda não o concebeu? Penso nesse caso, em uma didático-política
e em uma estético-política. Infelizmente, não temos as instituições
convencionais agindo nessa direcção. As instituições negam o outro.
Precisamos, portanto, mudar as instituições, ou criar instituições
capazes de contemplar o outro.
Sabemos que nossos povos nativos eram, e
são, abertos ao outro, assim como sabemos que os colonizadores não eram
e que os “ruralistas” de hoje não são. Sabemos que os machistas e
sexistas, que os exploradores e manipuladores em geral, também não são.
Na base de todos eles está o princípio do fascismo como ódio aos
diferentes. Os diferentes que devem ser excluídos. O fascismo produz
opressão de um lado, de outro, seduz para a forma autoritária de viver
garantindo aos que vivem esvaziados de pensamento, acção e afecto, que o
mundo está bem como está. O fascismo cancela, ao nível do discurso
exposto nas mídias, nos púlpitos e palanques que constroem opiniões
públicas e mentalidades colectivas, a chance de pensar no que estamos
fazendo uns com os outros que poderia nos garantir uma vida mais
prazerosa. Precisamos revitalizar esta pergunta como pergunta colectiva
capaz de orientar nosso diálogo. O fascismo também colonizou os prazeres
pelo estético-moralismo que é o consumismo ao qual foi reduzida a
antiga e emancipatória categoria ética da felicidade. Mas não devemos
aderir a isso só porque as coisas se apresentam assim hoje.
Treino para o ódio
Dizemos há séculos “o poder corrompe”
como se tivéssemos sido treinados para essa citação formal, sem que
saibamos muito sobre seu conteúdo. Assim como muitos dizem “tudo o que
não presta” imitando uns aos outros no gesto espectacular de falar por
falar. A fala por imitação se funda na citação. O autoritarismo é
“citacionalista”. Repete ideias lançadas no âmbito da propaganda
fascista, ela mesma viciosa e repetitiva. O autoritarismo depende de sua
repetibilidade, pois ele é uma máquina de produção de subjectividade
pelo discurso. Daí a importância da falação odiosa.
Não pensamos no que dizemos. Para
entender o conteúdo do que dizemos precisamos entender a forma com que
dizemos. E isso é muito complicado. O diálogo o é mais ainda porque não
nos ocupamos em prestar atenção no que pode ser um diálogo, ele mesmo um
modo de conversar cheio de potências. Não fazemos a sua experiência na
microfísica do quotidiano que poderia nos dizer algo sobre nossa potência
de transformação em termos macro-físicos. Precisaríamos pensar mais, é
verdade, mas vivemos no vazio do pensamento, ao qual podemos acrescentar
o vazio da acção e o vazio do sentimento.
Actualmente, como em todas as épocas em
que o autoritarismo é a prática de extermínio da política, os cidadãos
são chamados diariamente ao treinamento do ódio. Sabemos que nenhum afecto é totalmente espontâneo, que nenhum sentimento é natural. O treino
para o amor ou para o ódio se dá pela repetição dos discursos. É
preciso repetir e aderir, copiar, imitar. Falar por falar. Repetir o que
se diz na televisão e nos meios de comunicação. Ficar muito tempo
ouvindo a mesma coisa para dizê-la de qualquer jeito. Ou dizer sem
sequer saber o que se diz. No gesto do mero “compartilhar” sem ler que
se tornou fácil (tanto quanto o “comprar com um clique” pela internet)
sabemos que estamos na mera reprodutibilidade da informação que nada
quer dizer. Fugimos do pensamento analítico. Fugimos do discernimento
que ele exige.
Ora, a fuga do pensamento produz o seu
vazio. Ela o retro-alimenta. Só a interrupção do círculo vicioso do
pensamento vazio é capaz de mudar o rumo auto-destrutivo nos âmbitos
micro e macro-políticos. O ódio é o afecto capitalista que fomenta a morte
diabólica do diálogo. Política é produção simbólica. É sinónimo de
democracia como laço amoroso entre pessoas que podem falar e se escutar
não porque sejam iguais, mas porque deixaram de lado suas carapaças
arcaicas e quebraram o muro de cimento onde suas subjectividades estão
enterradas.
A política como perfuração de muros
ideológicos depende da persistência da resistência. Depende de
aprendermos o que pode ser um diálogo enquanto guerrilha metodológica
que precisa ser mais forte do que o ódio nesse momento. Não acabaremos
com o ódio pregando o amor, mas agindo em nome de um diálogo que não
apenas mostre que o ódio é impotente, mas que o torne impotente.
Então precisamos começar a conversar de um outro modo, mesmo que pareça impossível.
(Por: Márcia Tiburi)
(Marcia Tiburi) |
Sem comentários:
Enviar um comentário