"CANETAS, ENXADAS E ARMAS"
UNIDADE E DESENVOLVIMENTO EM LIÇÕES DE VIDA
É 
indiscutível o valor da escola convencional por que todos temos que 
passar, aqueles que não tiveram o infortúnio de serem abandonados na 
condição natural de ignorância, que nos é comum a todos quando nascemos.
 A escola da vida porém, sendo uma dádiva gratuita e universal, não deve
 ser desprezada, porque o seu valor também é indiscutível, como 
contribuição para a nossa aprendizagem e formação integral. Para 
qualquer um, o ideal é ter oportunidade e conseguir ser aluno atento em 
ambas as escolas, o que é sempre melhor que ter oportunidade ou ser 
atento só  numa delas, ou pior, não sê-lo em nenhuma delas.
Para a 
escola da vida não existem livros, nem alfabeto ou sistema de numeração e
 as lições não precisam sempre de ser recapituladas; e nem sempre há um 
professor disponível para ensinar ou para examinar o aprendido, porque 
nesta escola a oportunidade ou experiência de vida, a atenção, a 
observação, a análise e a conclusão do aluno, são fundamentais.
Parece 
ser no entanto que as grandes lições da escola da vida se associam com 
mais frequência às más experiências que às boas, embora de ambas se 
podem extrair matéria de aprendizagem. Se me perguntassem porque é que 
isso acontece, sem mesmo estar seguro da veracidade da minha resposta, 
diria: "devido a força do mal", só porque o que é mau já vem dentro de 
nós, ou se aprende e se consegue executar com maior facilidade.
O fazer 
mal, tal como o fazer errado, o destruir ou fazer com imperfeição requer
 menos esforço que os seus contrários que exigem muito. Para estar 
errada uma palavra escrita por exemplo, basta-lhe uma letra, mas é 
preciso todas as letras corretas para a palavra não estar errada. E se 
construir pode exigir conhecimento ou arte e por vezes  muitos anos de 
escola ou muito esforço, destruir não necessita de tanto para se levar a
 cabo. Também é indiscutível que é mais cómodo e dá menos trabalho a 
imperfeição do que a perfeição porque se a primeira dá liberdade para um
 ou mais defeito, a segunda exige rigorosamente zero defeito, o que 
implica muito mais esforço.
Recordo 
duma lição da escola da vida relacionada com uma má experiência que tive
 há muitos anos em Bissau, na altura em que ainda tinha 8 ou 9 anos de 
idade e estava no período de férias escolares que na Guiné coincide 
sempre com a época das chuvas, período em que é habitual muitos se 
aproveitarem para se dedicar a agricultura, inclusivamente a de pequeno 
cultivo no quintal. Eu, então sem pedir conselho a ninguém e acreditando
 ser capaz de fazê-lo com sucesso, decidi ensaiar a cultivar o milho 
numa parte do quintal da nossa casa.
Muito 
entusiasmado e sonhando com uma colheita de milhos bonitos, frutos do 
meu trabalho,  peguei por primeira vez na enxada com essa finalidade, 
preparei a terra para semear, 
lancei a semente do milho que passados alguns dias germinaram, e quando 
já davam pequenas folhas verdes fiquei ainda mais entusiasmado. Qual foi
 a minha frustração alguns dias depois quando vi umas galinhas que 
vieram e destruíram a minha lavoura. Toda a minha expectativa e o meu 
trabalho em vão por causa dumas galinhas invejosas. Paciência! A culpa 
foi minha porque não contava com isso devido a minha falta de 
experiência nesta matéria. 
Passou 
esse ano e no seguinte não desisti do sonho de comer milho por mim 
cultivado e estando nas mesmas circunstâncias do ano anterior, 
acreditando ter aprendido a lição com a má experiência e ter solução 
para superá-la, enchi novamente o peito de entusiasmo e desta  vez, 
antes de lançar a semente do milho, arranjei material e fiz uma vedação,
 de maneira que as galinhas não pudessem entrar na minha horta e assim 
ia tudo nos conformes, as folhas do milho se despontaram e se 
desenvolviam aos olhos distantes das galinhas até que apareceram destas 
vez uns cabritos e carneiros ordinários e abusadores para deitarem 
abaixo a vedação que tanto me tinha custado fazer e comerem tudo outra 
vez. Que remédio! Posso culpar à quem, senão à mim mesmo mais uma vez?
Foi a 
minha segunda e última frustração na tentativa de cultivar o milho, 
porque nos anos que se seguiram não voltei a ter qualquer iniciativa do 
género. O esforço não compensado tinha dado lugar a desmotivação. O que é
 que se pode concluir destes acontecimentos? Foi tudo uma perda de 
tempo, ingenuidade, ignorância ou imprudência? Foram experiências 
desagradáveis que podem ocorrer a qualquer pessoa nas mesmas 
circunstâncias, mas que neste caso aconteceu à uma criança? Foram lições
 de vida ou lições para a vida? Concordo com tudo isso!
Mas se 
de todo o esforço do trabalho da lavoura não pude beneficiar nem de uma 
espiga de milho por causa daqueles "malditos animais" já não digo o 
mesmo da experiência e do que aprendi com a interpretação dos resultados
 e isso graças àqueles "benditos animais" que afinal não tinham nada 
contra mim, estavam apenas a satisfazer as suas necessidades de 
sobrevivência ao mesmo tempo que me estavam a dar uma oportunidade de 
assistir à uma lição de vida, cujo significado só mais tarde poderia 
compreender melhor.
Como as 
experiências más marcam muito e são fáceis de recordar, tendo a 
oportunidade de refletir sobre elas, numa fase de vida mais distante e 
com mais maturidade, pude compreender melhor que para o 
desenvolvimento de um trabalho e do seu fruto não basta o entusiasmo e a
 atividade, antes de mais, o conhecimento ou saber é fundamental e a 
segurança é determinante em todo o processo. 
No caso 
da agricultura, se para além das atividades de semear, da rega e 
fertilização ou nutrição do cultivo,  importa ter conhecimentos sobre a 
qualidade da semente, as condições físicas e químicas do solo e as 
condições climáticas em que ela é praticada, não é menos importante a 
proteção contra as ameaças e destruições por animais, quando não por 
parasitas, pragas ou doenças e, no fim do processo, quando já os frutos 
estão à vista, torna-se também imperativo precaver-se de outros 
parasitas racionais ou irracionais, que não aparecem nunca no momento de
 cultivar, mas são os primeiros a aparecer quando o momento é de 
colheita e benefícios. 
Pude 
concluir ainda com esta lição de vida que a ameaça pode não ser sempre a
 mesma, como me tinha acontecido; uma vez foram as galinha invejosas e 
defendendo-se delas, vieram os cabritos e carneiros ordinários e 
abusadores. As ameaças podem mudar de natureza ou de forma pelo que devemos ter isso em consideração para nos prepararmos melhor. 
O 
desenvolvimento de um país tal como o desenvolvimento de uma planta 
necessita de conjugação ou melhor de união e harmonia destes três 
ingredientes: "saber, trabalho e segurança" que aqui simbolicamente traduzimos por "canetas, enxadas e armas"
 e que necessariamente têm que marchar juntas, de mãos dadas e passos 
acertados, em direção ao mesmo objetivo e guiados pelos mesmos 
princípios morais e éticos, em busca do desenvolvimento pretendido.     
Porque é
 que os países desenvolvidos ou com sérios propósitos de desenvolvimento
 investem muito e se empenham afincadamente na defesa, segurança e 
estabilidade interna? Qual é o país com este perfil que não confere alta
 prioridade à informação, educação e investigação científica e 
tecnológica como instrumentos de conhecimento e saber? Porque é que 
nestes países o investimento no trabalho, na sua organização, segurança e
 qualidade, são prioridades, independentemente do produto final ser para
 consumo interno ou para exportação? E é possível o desenvolvimento sem 
trabalho? A resposta a esta última pergunta é obviamente não, porque 
mesmo tendo todos os recursos naturais possíveis, há que dar-se pelo 
menos ao trabalho de explorá-los e controlá-los, para se poder  tirar 
benefícios deles.  
Não
 há desenvolvimento sustentável sem segurança, e tratando-se de um país a
 segurança implica, em primeiro lugar, uma estruturação lógica e 
capacitação do Estado com força e autoridade moral que o torne 
respeitável e respeitado pelos cidadãos. Neste aspeto a organização das 
forças militares e paramilitares e sua submissão ao poder político é de 
capital importância. Mas segurança para um país, em sentido lato, não se
 limita apenas ao papel reservado às forças militares e paramilitares, 
porque inclui também segurança alimentar, segurança sanitária e 
segurança social, ou seja, segurança nas diferentes fases ou situações 
de vida dos cidadãos. 
A 
segurança vista portanto nesta perspetiva abrangente deixa claro que 
depende também da organização do Estado, do trabalho de toda a sociedade
 e dos recursos de informação, conhecimentos e saberes disponíveis. A 
necessidade da segurança tem de ser reclamada, a seu tempo e em todas as
 suas vertentes.    
Não pode
 haver desenvolvimento onde não há segurança e reina a insegurança ou 
instabilidade ou seja onde aqueles que trabalham não estão protegidos ou
 ainda onde o trabalho não culmina com a produção em quantidade e 
qualidade desejadas mas com a frustração.
Não pode
 haver desenvolvimento onde a educação, a informação, os conhecimentos e
 saberes não estão na primeira linha da segurança ou da defesa do 
território e dos cidadãos contra ameaças interna e externa que podem por
 em causa a estabilidade e o progresso da comunidade, tonando-a 
vulnerável à muitos males ou ameaças que, como já vimos, podem mudar de 
natureza e de forma. 
Não pode
 haver desenvolvimento sustentável e seguro onde não é de todos a 
obrigação de participar na defesa e segurança do território ou onde o 
direito de participação na produção de bens e na distribuição da riqueza
 nacional não é extensivo à todos os sectores ou estratificações da 
sociedade.
Não pode
 haver desenvolvimento onde o trabalho não é organizado, desenvolvido e 
dinamizado a partir e na base dos progressos da informação e dos 
conhecimentos e saberes adquiridos, porque  sempre que o conhecimento e o
 saber não for valorizado e não tiver reflexo prático no trabalho,  vai 
com certeza haver pouca produtividade, mesmo que haja muita atividade. 
Como o 
desenvolvimento é um processo na qual interagem diversos sectores, 
torna-se importante a  compreensão da forma como o desempenho de um 
sector pode influenciar o desempenho de outros sectores. Assim, um
 mau desempenho do sistema político pode condicionar instabilidade 
política e militar, desorganizar diversos sectores, travar os 
investimentos, deprimir a produção e fazer atrasar ou regredir a 
economia. Contrariamente, melhor organização e desempenho do sistema 
político e administrativo terá reflexos positivos no desempenho e 
equilíbrio de todos os demais sectores da sociedade e favorece a 
produção e a economia, além de ter uma contribuição positiva para a 
justiça, confiança e paz social. Melhor educação é contribuição 
fundamental para melhor saúde e melhor produção, maior consciência 
social e melhor intervenção política e social da população. Melhor saúde
 confere à população maior capacidade produtiva e melhor qualidade de 
vida. Melhor produção e melhor distribuição da riqueza nacional é 
garantia de melhores possibilidades para a educação, para a saúde e para
 a segurança social. Melhor organização e desempenho do sistema 
judiciário é imperativo para a preservação da ordem social, para o 
reforço da autoridade do estado, para a promoção da estabilidade social e
 de tudo o que dele depende.    
Pode 
haver desenvolvimento se o sistema político e administrativo tiver 
estruturação e funcionamento racionais, se for capaz de reunir 
consciência e mais-valias nacionais e se poder beneficiar de 
conhecimentos e saberes necessários para proporcionar à sociedade 
condições de paz, estabilidade, organização e justiça para que todos os 
demais sectores da sociedade  possam cumprir o seu papel.
Pode 
haver desenvolvimento se a educação, a informação e a comunicação forem 
priorizadas, se tiverem qualidade e se o acesso a elas for garantida à 
toda a sociedade no seu conjunto, sendo elas instrumentos de aquisição, 
 preservação e transmissão de conhecimentos e saberes, além de 
constituírem meios de formação da consciência nacional e motivação 
social.
Pode 
haver desenvolvimento se os sectores de saúde, da justiça e da defesa e 
segurança forem priorizados à altura das suas responsabilidades como 
sectores que estão na primeira linha da proteção da sociedade contra 
doenças, desordem social, violência, desestabilização e outras ameaças 
internas ou externas à integridade da nação.  
Pode 
haver desenvolvimento se o sistema produtivo e os restantes sectores da 
economia poderem beneficiar de organização, recursos e gestão adequados,
 se tiverem acesso à conhecimentos, saberes e informação avançados, se 
incluírem o máximo possível da população ativa e se lograrem produção e 
distribuição de rendimentos, de forma a assegurar pelo menos as 
necessidades da população em relação à alimentação, alojamento, saúde e 
segurança social.
Cabe ao 
sistema político e administrativo a responsabilidade de liderar ou 
orientar a sociedade na direção certa do desenvolvimento, tarefa pela 
qual lhe é exigido qualidade e capacidade de contribuir de forma 
decisiva ao restabelecimento da confiança e  motivação social, por via 
do exercício de identificação, análise e resolução de conflitos sociais e
 de outros fatores de bloqueio, de estagnação e de retrocesso do 
desenvolvimento.
Esta
 confiança e a motivação social que são indispensáveis para um 
desenvolvimento saudável, equilibrado e sustentável, exigem vigilância, 
prevenção e combate sem tréguas às pragas que podem minar o progresso de
 qualquer  sociedade, tais como: impunidade e cultura de violência, 
tribalismo, sectarismo, nepotismo, amiguismo, clientelismo,
 corrupção, peculato, promiscuidade de negócios privados com negócios 
estatais, tráficos ilícitos, intriga política,  fraude eleitoral, compra
 de consciência, desrespeito ou perseguição de adversários políticos, 
abuso de poder ou de autoridade, desobediência militar, desvalorização 
de competências, não reconhecimento do mérito, promoção do medo e da 
ignorância, fuga de capital, fuga ou emigração de cérebros, de quadros e
 de outros  trabalhadores qualificados, etc.
Na perspetiva destas linhas de pensamento, pode-se concluir que todos os cidadãos,
 filhos e amigos do nosso país são precisos e devem poder participar no 
seu desenvolvimento, pelo  que é fundamental que seja alcançada uma 
condição prévia - reconciliação e reformas genuínas - que  permita apaziguar e revitalizar a sociedade e possibilitar a conjugação, harmonização e coordenação destes três ramos do grande exército social para o desenvolvimento: "canetas, enxadas e armas". 
Convido a
 todos a refletirmos em conjunto e a fazermos propostas construtivas em 
prol do nosso futuro e da nossa casa comum, porque as más experiências 
são também lições de vida e para a vida. 
Carlos A. Gomes 
Médico
( C/ a devida vénia, tomei a liberdade de reproduzir este texto para V. reflexão ) 
 
 
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