A confiança, transparência e rigor são as dimensões que devem ser tidas em conta no processo de emancipação das instituições do Estado e dos órgãos de soberania.
É certo que a nação está doente, mas, ainda assim, antes de se falar na cura, temos que perceber a origem da doença e focalizarmos na sua prevenção. A crise política actual, que também é uma crise conjuntural, gerou muitas energias e perdeu o foco naquilo que deveria ser a solução confortável para o país face aos objectivos de desenvolvimento e de crescimento sustentável.
Antes de mais, é importante reflectir sobre o que tem sido a nação nos seus 42 anos de independência e, a partir daí, construir formas sustentáveis de coabitação em matéria de política e de afirmação da jovem democracia – ainda muito prematura para a violência sistemática que a sua jovialidade tem sido confrontada.
Na verdade, está claramente diagnosticado que a falta de diálogo e a luta intestinal pelo poder têm sido as causas principais da difícil coabitação entre os órgãos de soberania, porquanto a relação de confiança entre os actores políticos ser ainda uma ilusão. Contudo, torna importante fazer uma breve reflexão sobre o posicionamento político que tem sido a democracia guineense (ou a falta dela) e as rupturas constitucionais e golpes de estado frequentes.
De facto, desde a independência até à data (1973-2015) a nação foi interrompida 10 vezes, entre rupturas constitucionais e golpes de Estado, que corresponde cerca 35 anos de atraso em termos do processo de coabitação e da procura do desenvolvimento sustentável.
Por sua vez, as 8 eleições ocorridas, entre legislativas e presidenciais, correspondem cerca de 20 anos de tentativa de reposição constitucional (gráfico1 a seguir), não conseguiu sobrepor-se aos problemas criados pelos atores políticos guineenses em virtude da falta de entendimento e do diálogo.
No mesmo período, a Guiné-Bissau teve 14 Presidentes da República e cerca de 23 Primeiros-Ministros, algo injustificável para um país que almeja o desenvolvimento e progresso, uma vez que não existem programas económicos nem orçamentos gerais de estado capazes de serem executados na sua íntegra com as constantes rupturas constitucionais tendo em conta os objectivos governamentais.
A recente crise levantou o véu e demonstrou, mais uma vez, as fragilidades da nação, bem como da classe política guineense, que importa agora refundar e estimular em termos de “learning opportunities” e resolução dos problemas conjunturais que o país enfrenta.
Em primeiro lugar, é de salientar que os protagonistas deste impasse jurídico-político (a componente jurídica ficou resolvida com o Acórdão n.º 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça, a separação de poderes funcionou) são militantes e dirigentes do PAIGC, partido vencedor das eleições ocorridas em Abril de 2014, porquanto participaram com vigor na sua conquista. Aliás, importa salientar que foi a primeira vez na história da jovem democracia guineense em que a massa popular recorreu, expressivamente, às urnas com elevação e sentido patriótico para afirmação da sua cidadania, com energia e robustez necessária.
No entanto, factos são factos e não se podem furtar. Nos últimos meses assistimos, impávidos e serenos, a derrocada que foi o país e a difícil situação em que se encontra o xadrez político, pelo que importa agora destacar as debilidades do sistema tendo em conta a falta de diálogo entre os órgãos de soberania.
Certamente, a constituição da república guineense atribui funções específicas a cada um dos órgãos de soberania mas pede solidariedade institucional na sua execução – é importante encontrar formas criativas de concretizar a solidariedade institucional que nos é pedida pela constituição, sempre através do diálogo – se soubermos ouvir os conselhos dos outros com atenção, despidos de quaisquer interesses particulares, estaremos a permitir uma via de diálogo e a construir uma relação, uma cultura.
Não querendo fazer juízos de valor ou análise do volume e da qualidade das actividades desenvolvidas em termos do debate político e da responsabilidade no exercício da cidadania, importa, contudo, referir que é necessário ponderar a prática de determinados atos que extravasam as fronteiras constitucionais e, mais, quando tais atos não estão devidamente articulados e concertados com os restantes órgãos de soberania.
A título de exemplo, é possível constatar como é que as pequenas falhas em matéria de solidariedade política podem resultar num conflito de proporção que hoje se assiste na Guiné-Bissau, que suspendeu todo um país, estagnou a administração pública, fez recuar a economia e gerou uma crise de confiança que poderá abalar todo sistema em que se assenta a jovem democracia guineense – é importante sempre ter em atenção que um país frágil como a Guiné-Bissau, ocorrendo sistematicamente situações de rupturas e da falta de entendimento e de confiança entre os órgãos de soberania, haverá sempre alguns a aproveitarem-se dessa falha com intuito de subverter o rumo das coisas.
Por exemplo, no que concerne ao órgão legislativo, nomeadamente Assembleia Nacional Popular, pese embora os deputados terem o dever de manter um contacto estreito com os seus eleitores e de lhes prestar regularmente contas das suas actividades, são atribuídas competências constitucionais específicas em matéria de legislação e fiscalização do governo e não propriamente de proceder a actividades de presidência aberta e projecção de declarações em nome do povo, tais matérias políticas que apenas dizem respeito à Presidência da República. Ou, ainda, assuntos importantes que devem constituir matéria de Estado serem discutidos de forma aberta em bancadas e fora do contexto do debate nacional – não é aconselhável em democracia e nem respeita o princípio de solidariedade institucional.
No que se refere à Presidência da República, o compromisso institucional obriga, desde a primeira hora, que as diligências feitas junto dos outros órgãos de soberania sejam de concertação estratégica e diálogo permanente na busca do melhor caminho para a nação. Como símbolo da unidade, garante da independência nacional e da Constituição, o Presidente da República não prescinde, certamente, dos seus poderes de demissão do governo e de dissolução do parlamento em circunstâncias excepcionais de crise política que afectem o normal funcionamento das instituições. Mas, como é óbvio, também não deixa de exercer o seu papel de árbitro e de garante da coesão nacional sempre no espírito da conciliação e da tolerância. É importante que a figura número um do Estado promova o ambiente para uma concertação estratégica com os restantes órgãos de soberania. Tem o poder, pela inerência do cargo que ocupa, assim demonstra a Constituição da República, de presidir o conselho de ministros e solicitar informações sobre atos de governação e matéria de debate político na assembleia da república, devendo o mesmo ocorrer sistematicamente e em perfeita sintonia com os demais órgãos de soberania. Fazendo isso facilitará de forma acertada e coerente as decisões que tomar no futuro – a razão é a principal fonte das decisões que se tomam, é importante acautelar isso.
Relativamente ao Governo, órgão executivo e administrativo supremo da república, tem o papel de garantir que as instituições do Estado exercem as suas competências de forma responsável em prol das populações e sempre na ótica do bem comum. A transparência e o rigor na gestão da coisa pública são sinónimos de seriedade na condução das políticas que levam para junto dos cidadãos o bem-estar social. Daí, revela-se de importância extrema que na composição do governo sejam observados determinados princípios que norteiam a escolha dos elementos que deverão integrar o executivo, tendo em conta a competência, o mérito e a ética, capazes de articular os objectivos programáticos com as orientações estratégicas definidas em matéria de governação.
A importância da ética na política é condição “sine qua non” para a confiança que se cria em relação aos restantes órgãos de soberania. Importa, por isso, ter presente que um cidadão que sobre ele pende um processo judicial não deverá tomar parte num governo por razões que se prendem com a ética, disciplina e respeito pelo princípio da separação de poderes. Para além disso, não se pode e nem se deve tomar como normal e natural o fenómeno da corrupção. Há que incentivar o seu combate e consciencializar a sociedade de que este fenómeno pode minar a essência de um Estado, desestruturar o poder e o controlo dos bens públicos, instrumentos importantes para o desenvolvimento da nação.
Contudo, para que faça sentido um diálogo frontal e demonstrar o que é jurídico e o que é político, é importante também que o poder judicial saiba tomar o partido apenas da justiça e em estreita sintonia com a Constituição e Leis da República, exercendo a sua autonomia com isenção e imparcialidade, fora da ação e do comando de qualquer outro órgão de soberania. Pese embora existirem dificuldades de “relacionamento institucional” entre os órgãos de soberania as mesmas são inerentes ao “normal funcionamento das instituições da República”, pelo que é importante manter a confiança, coerência, maturidade política e sentido de estado acima de tudo.
Como se sabe, a confiança interna tem um peso muito grande na forma como o país é visto além fronteira. Se se tiver em consideração que quase metade do orçamento de Estado guineense depende do exterior – ajudas externas – então muito mais deverá ser feito para a manutenção da coesão nacional e garantir que a estabilidade política não seja apenas uma Quimera.
Finalmente, a tal prevenção da doença que aflige a política guineense deverá encontrar a sua resposta nas reformas políticas e institucionais que devem ser feitas com urgência no sentido de manter a coesão nacional e salvar ainda a pouca dignidade que resta à classe política guineense. A revisão Constitucional, a revisão da Lei Eleitoral, a Reforma do Estado e da Administração Pública são urgentes e carecem de um debate nacional profundo. Em relação aos partidos políticos recomendaria a revisão dos seus estatutos criando condições para um debate mais sério e conciliador, bem como a definição de critérios de elegibilidade na escolha dos candidatos a deputados da Nação e aos elementos que devem integrar os órgãos de soberania.
Lisboa, 10/9/2015 Dr. Luís Vicente
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