Frontalmente, poucos o assumem. Mas uma viagem ao interior rural da Guiné-Bissau permite confirmar a dura realidade. Os guineenses continuam a acreditar nos espíritos malignos e, em nome da tradição, aceitam matar as crianças
Há quem diga que nascem com «pouca sorte», mas para grande parte da população da Guiné-Bissau, uma criança com deficiência, desnutrida, gémea, albina, com doença crónica ou simplesmente feia demais, é um foco de maldição no seio familiar, que tem que ser eliminado. Os guineenses acreditam que estas crianças, que apelidam de Irã, não são humanas e trazem associados determinados poderes enviados pelo demónio, que podem ser responsáveis por um conjunto de males para a família e para a comunidade. Por isso, organizam cerimónias para as matar. Assim, literalmente, e de forma fria e impessoal.
O exemplo de José (nome fictício) é paradigmático. O menino esteve bem nos primeiros meses de vida, até contrair a malária. Os pais, sem instrução e com poucos recursos, não conheciam a doença, muito menos a forma de enfrentar os picos de febre do bebé. Como fazem muitos guineenses, sobretudo nas zonas rurais, resolveram levá-lo a um curandeiro, que o ‘tratou’ com mezinhas tradicionais. Resultado: a criança piorou e ficou com atraso no desenvolvimento. Talvez por sugestão do feiticeiro, o pai ficou convencido que o filho se tinha tornado Irã e começou a planear a melhor forma de o entregar à morte, deixando-o na margem do rio durante a maré baixa ou em cima de um ninho de térmitas. Sabendo dos planos do marido, a mãe do menino conseguiu entregá-lo à guarda das religiosas que trabalham em Bissau, para tentar travar a macabra tradição. Lamentavelmente, a criança não resistiu à doença e faleceu, antes de completar os dois anos.
Embora não existam estatísticas oficiais sobre as crianças Irã, um estudo recente do Ministério da Justiça guineense e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) nas regiões de Cacheu, Oio e setor autónomo de Bissau revela que 82 por cento das mulheres inquiridas admitiram que uma criança que nasce com deficiência é abandonada. Mas quando foi perguntado à população se era comum esta prática de infanticídio, apenas 46 por cento respondeu afirmativamente. O que significa, para os autores da investigação, que o «bota menino» (em crioulo) «não é reconhecido como um problema» pela sociedade da Guiné-Bissau.
De acordo com os testemunhos recolhidos pelos investigadores, há várias formas de eliminar as crianças deficientes, não apenas bebés mas também menores de quatro e cinco anos. «Depois de algumas cerimónias, a criança ‘não humana’ é levada e depositada na margem do rio com os seus haveres, durante a maré baixa. Como é natural, a criança é arrastada pela corrente, mas, segundo o entendimento dos praticantes destes rituais, o desaparecimento é uma transferência da vida terrena para o abismo, lugar da proveniência desses seres sobrenaturais que tomam corpo e forma humana através da mulher grávida e nascem à imagem do homem».
Neste confronto entre tradição e o direito à vida, a balança tem pendido para a quase indiferença. «Surpreendentemente», os autores do estudo chegaram à conclusão que entre as «práticas tradicionais nefastas» identificadas na Guiné-Bissau, o infanticídio de crianças Irã é o que menos consta «enquanto objeto de preocupação, quer das organizações internacionais, quer das organizações não governamentais (ONG) que protegem os direitos humanos».
O próprio Direito Penal guineense tem como posição doutrinária que, «desde que provada a existência do ritual, o facto deixa de ser crime, mas passa apenas a constituir o ‘afastamento de seres dessa natureza’».
O exemplo de José (nome fictício) é paradigmático. O menino esteve bem nos primeiros meses de vida, até contrair a malária. Os pais, sem instrução e com poucos recursos, não conheciam a doença, muito menos a forma de enfrentar os picos de febre do bebé. Como fazem muitos guineenses, sobretudo nas zonas rurais, resolveram levá-lo a um curandeiro, que o ‘tratou’ com mezinhas tradicionais. Resultado: a criança piorou e ficou com atraso no desenvolvimento. Talvez por sugestão do feiticeiro, o pai ficou convencido que o filho se tinha tornado Irã e começou a planear a melhor forma de o entregar à morte, deixando-o na margem do rio durante a maré baixa ou em cima de um ninho de térmitas. Sabendo dos planos do marido, a mãe do menino conseguiu entregá-lo à guarda das religiosas que trabalham em Bissau, para tentar travar a macabra tradição. Lamentavelmente, a criança não resistiu à doença e faleceu, antes de completar os dois anos.
Embora não existam estatísticas oficiais sobre as crianças Irã, um estudo recente do Ministério da Justiça guineense e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) nas regiões de Cacheu, Oio e setor autónomo de Bissau revela que 82 por cento das mulheres inquiridas admitiram que uma criança que nasce com deficiência é abandonada. Mas quando foi perguntado à população se era comum esta prática de infanticídio, apenas 46 por cento respondeu afirmativamente. O que significa, para os autores da investigação, que o «bota menino» (em crioulo) «não é reconhecido como um problema» pela sociedade da Guiné-Bissau.
De acordo com os testemunhos recolhidos pelos investigadores, há várias formas de eliminar as crianças deficientes, não apenas bebés mas também menores de quatro e cinco anos. «Depois de algumas cerimónias, a criança ‘não humana’ é levada e depositada na margem do rio com os seus haveres, durante a maré baixa. Como é natural, a criança é arrastada pela corrente, mas, segundo o entendimento dos praticantes destes rituais, o desaparecimento é uma transferência da vida terrena para o abismo, lugar da proveniência desses seres sobrenaturais que tomam corpo e forma humana através da mulher grávida e nascem à imagem do homem».
Neste confronto entre tradição e o direito à vida, a balança tem pendido para a quase indiferença. «Surpreendentemente», os autores do estudo chegaram à conclusão que entre as «práticas tradicionais nefastas» identificadas na Guiné-Bissau, o infanticídio de crianças Irã é o que menos consta «enquanto objeto de preocupação, quer das organizações internacionais, quer das organizações não governamentais (ONG) que protegem os direitos humanos».
O próprio Direito Penal guineense tem como posição doutrinária que, «desde que provada a existência do ritual, o facto deixa de ser crime, mas passa apenas a constituir o ‘afastamento de seres dessa natureza’».
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