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Joseph Pulitzer

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Minha cor politica


Foi há poucos dias, de madrugada. Toca o telefone, atendo, era uma chamada do outro lado do Atlântico. Celebrei o acontecimento com o alarido com que nós, os negros, nos brindamos quando reencontramos um amigo ou parente que não vemos há anos.

E, de facto, há anos que não o via; ouvir-lhe a voz, mesmo com o avançado da hora, era motivo de festa. Esfreguei o olho, sacudi o sono e saltei da cama. Sim, sou do tipo que não consegue conversar deitado e em trajes menores. Talvez por pertencer àquele tempo distante em que não havia telemóveis e atender uma chamada implicava deslocarmo-nos até ao aparelho, geralmente estacionado na sala. Assim fiz, vesti-me e sentei-me no sofá.

Depois das saudações da praxe, o meu interlocutor não me deu espaço para mais dois dedos de conversa de chacha, fulminou com a pergunta: “Quem é o negro português?” Confesso que não esperava ter sido tirado da cama para identificar ou traçar o perfil de um grupo étnico, ainda que fazendo parte do mesmo. A resposta exige naturalmente uma reflexão mais cuidada, capaz de se esquivar e se distanciar dos lugares comuns em que quase inevitavelmente esbarramos, antes de mergulharmos e resgatarmos, no meio preconceito, recalque e estigma social, o verdadeiro rosto do negro luso.

Para traçar esse retrato, poderíamos até começar com os Descobrimentos e afirmar que o negro português é aquele que descobriu o caminho marítimo para a Índia, aquele que descobriu o Brasil. Se não fosse, como disse, pelo avançar da hora, falaríamos de astronomia e da origem das caravelas. Mas não da forma tímida e superficial que geralmente dedicamos à análise desses aspetos históricos, tão lusos, tão mouros, tão negros. Contudo, por não existirem muitos negros que se interessem por esses assuntos, continuamos a navegar nesse mar de silêncio, monocromático, convencidos de que a primeira coisa que os negros portugueses conheceram, uma vez em terra, foram os calabouços da alfândega do porto de Lisboa, onde, após o desembarque, eram avaliados, divididos em lotes e vendidos em leilão.

Aprendemos os modos, a língua, os santos, aprendemos até a falar baixinho e a andar com os olhos postos no chão. Numa conduta exemplar, evitando até questões elementares, como esta de “quem é o negro português?”. Portugal, se viveu isolado até 1974, então os negros, na sombra do império, estavam completamente esquecidos, entregues a uma solidão tão violenta que os poucos motivos de orgulho, como os feitos extraordinários de Eusébio, eram celebrados sem a euforia com que celebramos hoje os feitos de um patrício. Ter consciência da cor da pele e celebrar esse facto sempre foi tido como um acto político, ser negro é um acto político, e como os negros não "pensam", ter consciência política é perigosamente assustador.

( "Minha cor política" de Kalaf Epalanga)
(in: Público, 27/04/201, via Ana Andringa)



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