Engana-se quem pensa que um Nobel da Paz passa o tempo apenas estudando os problemas do mundo ou mergulhado em reuniões em Washington, Genebra e Haia. Na rotina de José Ramos-Horta, há espaço para ouvir Elvis Presley e ler Paulo Coelho.
Forjado no exílio, quando o Timor Leste era dominado pela Indonésia,
Ramos-Horta conseguiu colocar na agenda da comunidade internacional a
luta pela independência da pequena ilha que fala português no Sudeste
Asiático. Não sem feridas: teve quatro irmãos assassinados por milícias
pró-Indonésia. Após a guerra civil e a intervenção da ONU, com a ajuda
de militares brasileiros, ele se tornou o segundo presidente do novo
país. Sofreu um atentado na porta de casa, sobreviveu e acredita que o
ataque, ao invés de reacender antigas rixas, serviu para unir o povo.
Hoje, distante do Timor, ele é o representante do secretário-geral da
ONU em Guiné-Bissau, país africano que vive uma instabilidade política.
Na semana passada, antes de palestrar no Fronteiras do Pensamento, na
Capital, Ramos-Horta recebeu Zero Hora para uma entrevista. A seguir, os
principais trechos:
Zero Hora — Como é ser um Nobel da Paz?
José Ramos-Horta - É uma honra, não sei se mereci.
Nunca sonhei, nunca pensei no assunto. No dia em que recebi o
telefonema, fiquei muito surpreendido, chocado. Eu estava em Sydney, foi
a ligação de um jornalista que havia recebido a informação e me
contatou para que eu comentasse. Espero que meu nome tenha sido útil
para colocar Timor Leste no mapa e que tenha contribuído para pressionar
a comunidade internacional a encontrar uma solução para o problema.
ZH — Um Nobel tem tempo para descansar?
Ramos-Horta - Quando descanso, ouço música. De
Lisboa para cá, ouvi Elvis Presley. Tenho um (iPod) nano, só de Elvis,
que ganhei de presente. Mas gosto de música clássica, Andrea Bocceli.
ZH — O que o senhor está lendo?
Ramos-Horta - Deixei de ler Paulo Coelho (risos).
ZH — O senhor lia Paulo Coelho?
Ramos-Horta — Sim, mas deixei de ler porque ele plagia muito a Bíblia. Tudo gira em torno da Bíblia..
ZH — Mudando de assunto: o senhor é cotado para secretário-geral da Organização das Nações Unidas. É um sonho?
Ramos-Horta — Não tenho interesse, nem
possibilidade. A próxima região a ter direito ao posto será a Europa. E
europeus com condições para secretário-geral não faltam. Os europeus
sempre querem mandar no mundo.
ZH — Em crises recentes, a ONU foi incapaz de evitar guerra,
como na Líbia, no Iraque e, agora, na Síria. Esse modelo está esgotado?
Ramos-Horta - A reforma da ONU, para que se
estabeleça um equilíbrio estratégico, é necessária. O mundo hoje é
diferente de há 30 anos. O Brasil é hoje a sétima economia do mundo. A
Índia tem 1 bilhão de habitantes, a China, 250 milhões. Não se pode
continuar pensando nas envelhecidas potências europeias como únicas
superpotências. Mas não acredito que a reforma do Conselho de Segurança
possa, por si só, torná-lo mais eficaz. Mais democrático e legítimo
talvez, mas não necessariamente eficaz. Temos de ser realistas: há
problemas no mundo, como na Síria, que são extremamente difíceis de
resolver. Conflitos muito sectários, com raízes históricas, religiosas,
fanatismo envolvido, eu diria que praticamente não têm solução. Como é
possível que algum gênio da ONU possa resolver uma questão assim? Veja o
conflito Irã-Iraque, nos anos 80: morreram mais de 1 milhão de pessoas,
os dois países estavam exaustos. Eles decidiram dialogar e parar com a
guerra, porque se esgotaram. Não porque alguém mediou.
ZH — O que o senhor achou da fala da presidente Dilma Rousseff na ONU, questionando a espionagem do governo americano?
Ramos-Horta - Eu me solidarizo com o Brasil e outros
países que foram alvo dessa descarada interferência da agência
americana. Extravasaram os limites do aceitável. As ameaças à segurança
dos EUA são muito sérias. Mas é preciso parceria solidária ativa e de
igual para igual entre EUA e Brasil, entre EUA e Alemanha, e não
espionagem. O argumento americano é segurança, mas espionaram acordos de
ciência e tecnologia. É preciso parceria entre forças de segurança,
troca de informações, e não espionar e-mails da presidente brasileira.
Isso não tem nada a ver com segurança.
ZH — O senhor tem sequelas do atentado que sofreu?
Ramos-Horta - Sim, foi um preço que paguei. Mas,
depois que fui ferido, a violência parou e nunca mais voltou. Quando fui
ferido, o próprio grupo que fez isso ficou desorientado e disse que,
quando eu regressasse do hospital, entregariam as armas, mas só se
renderiam a ele. Três dias depois, quando sai do hospital, eles de fato
entregaram as armas.
ZH — Como foi o ataque?
Ramos-Horta — Foi na rua. Um major rebelde foi até a
minha casa sem avisar. Eu tinha ido caminhar. Quando ouvi um tiro,
voltei. Um dos rebeldes pensou que eu lhes havia armado uma emboscada,
então fui baleado.
ZH — Como maior país da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP), o Brasil deveria fazer mais pelo Timor Leste e pelas
outras nações que falam o idioma?
Ramos-Horta - Sem dúvida, o Brasil devia investir
muito mais no português em Timor Leste. O Brasil tem riqueza para isso.
Um país que consegue gastar US$ 8 bilhões em estádios de futebol, como
não pode colocar 500 professores brasileiros em Timor Leste ou
Guiné-Bissau? O Brasil, pela sua raiz luso-tropical, pela maneira de ser
do brasileiro, é aceito em todo o mundo. O professor, o engenheiro, o
médico são os melhores embaixadores brasileiros no mundo. E o Brasil é
cada vez mais admirado pela sua tecnologia em petróleo, é uma potência
industrial.
ZH — Um Nobel da Paz realmente acredita que a paz é possível?
Ramos-Horta - A paz só será possível quando ela
existir em cada casa, em cada família. Devemos incutir nos filhos a
bondade, a generosidade, a solidariedade, e não o egoísmo, a vaidade.
Que a paz possa surgir nas escolas para tranquilidade das crianças. E
que não tenham medo de ir para casa, porque sabem que os pais os acolhem
como amor, sem violência doméstica. Se a paz não começar em casa, não
vai existir nas escolas, nos bairros, não vai existir no país.
(Rodrigo Lopes)
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