Missão à Guiné-Bissau de 24 de fevereiro à 1º de março de 2014
OBSERVAÇÕES E RECOMENDAÇÕES PRELIMINARES
Membros da imprensa, senhoras e senhores,
Eu
vos falo hoje, ao término da minha missão oficial à Guiné-Bissau
a convite do Governo, de 24 de fevereiro à 1º de março de 2014.
Meu objetivo durante esta visita foi avaliar a situação daquelas
pessoas vivendo em pobreza extrema no país, e a seguinte declaração
contém as minhas descobertas preliminares e recomendações. Eu
gostaria de enfatizar que a declaração de hoje cobre todos os temas
urgentes dos quais eu espero que sejam tratados pelo Estado como
prioridade. Eu apresentarei meu relatório final à 25ª sessão do
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em junho de 2014. O
relatório final incluirá minhas recomendações de maneira mais
detalhada, para apoiar o Governo a melhorar as vidas das pessoas
vivendo em situação de pobreza.
Dado
o caráter imediato de alguns dos temas levantados comigo por várias
partes interessadas, eu me sinto compelida a tratá-los aqui hoje, e
não esperar pela consideração dos temas no meu relatório final da
missão ao país, para junho de 2014. Embora eu reconheça que muito
mais pode ser dito sobre uma série de assuntos, incluindo o
encorajamento de políticas públicas e programas, essa é uma
escolha deliberada. Como tal, os seguintes comentários são – e
devem ser relatados como – um trabalho em curso.
Introdução
Durante
a minha estadia, reuni-me com várias autoridades governamentais,
incluindo o Presidente de Transição Serifo Nhamadjo; o
Primeiro-Ministro de Transição Rui Duarte de Barros; o Ministro da
Justiça Mamadú Saido Baldé; o Ministro da Economia e Integração
Regional Soares Sambú; o Ministro da Agricultura Nicolau dos Santos;
a Ministra das Mulheres, Família e Solidariedade Social Gabriela
Fernandes; o Secretário de Estado da Segurança Alimentar Bilony
Nhama Nantamba Nhasse; o Ministro da Educação Nacional, Juventude,
Cultura e Desportos Alfredo Gomes Júnior; a Presidenta da Comissão
Nacional de Direitos Humanos Aida Injai Fernandes; e a Comissão
Nacional de Planeamento e Coordenação Estratégica.
Eu
também me reuni com representantes de organizações internacionais,
da comunidade de doadores, instituições financeiras internacionais
e uma gama de organizações da sociedade civil.
Ademais,
reuni-me com comunidades vivendo em condições de pobreza na região
de Biombo, sectores de Quinhamel, Mansôa, Bissorã, Mansaba e
Nhacra. Eu visitei várias instalações de tratamento de saúde,
tais como o Hospital de Mansôa e o Projeto Saúde Bandim na região
de Quinhamel (tabanca de Bucumul).
Eu
gostaria de agradecer o Governo da Guiné-Bissau pela sua excelente
cooperação durante a visita. Eu aprecio muito o espírito de
abertura com o qual eu pude dialogar com as autoridades.
Eu
me reuni com o Representante Especial do Secretário-Geral José
Manuel Ramos-Horta, o Representante Especial Adjunto do
Secretário-Geral e Coordenador Residente Gana Fofang, e outros
representantes da Equipa Nacional das Nações Unidas. Eu gostaria de
estender meus agradecimentos mais sinceros à Secção de Direitos
Humanos do Gabinete Integrado das Nações Unidas para a Consolidação
da Paz na Guiné-Bissau (UNIOGBIS), pela sua excelente colaboração
e assistência a esta missão.
Estou
em dívida com todas as pessoas que tomaram seu tempo para
reunirem-se comigo, uma vez que as suas contribuições à minha
visita foram incomensuráveis. Eu fiquei particularmente tocada
durante a missão, pelo engajamento vibrante e ativo da sociedade
civil trabalhando em direitos humanos e temas relacionados à
pobreza. Eu sou especialmente agradecida à todas as pessoas que
compartilharam as suas experiências pessoais, por vezes traumáticas,
de luta contra a pobreza extrema e exclusão social.
Senhoras
e senhores,
Desde o final do
conflito de quase uma década pela independência em 1973, a
Guiné-Bissau experimentou instabilidade política quase que
constantemente, culminando na guerra civil de 1998-1999, a qual
deixou um quarto da população refugiada. O conflito causou severas
rupturas económicas e destruição generalizada da infraestrutura
pública, um impacto do qual o país ainda recupera-se. Desde a sua
independência, nenhum governo da Guiné-Bissau completou o período
de seu mandato. A Guiné-Bissau tem enfrentado uma instabilidade
contínua, caracterizada por recorrentes assassinatos de altos
funcionários estatais, golpes de estado, perseguições políticas e
renúncias forçadas de agentes públicos, sendo que a última
eleição presidencial foi interrompida por um golpe militar em 12 de
abril de 2012. Essa instabilidade resulta em um declínio no nível
de desenvolvimento, com uma complexa interligação de pobreza,
reforço de normas sociais tradicionais e culturais que prejudicam e
limitam o acesso das comunidades e famílias aos serviços
básicos.
A proporção da
população vivendo em situação de pobreza monetária aumentou
notavelmente entre 2002 e 2010. O número de pessoas vivendo com
menos de dois dólares ao dia aumentou em quatro pontos percentuais,
chegando a 69 porcento (DENARP II, 2011, p. 7). O aumento da pobreza
extrema (menos de um dólar ao dia) foi ainda maior, subindo de 21 a
33 porcento. A grande disparidade entre a capital e o resto do país
também foi incrementada entre 2002 e 2010: a pobreza extrema
aumentou de 25 a 40 porcento nas regiões, em comparação ao aumento
de 9 a 13 porcento em Bissau.
Os níveis de
pobreza extrema e absoluta são excessivamente altos fora da capital.
Entre um terço e metade da população vive com menos de um dólar
ao dia nas regiões, e a pobreza absoluta é endémica no campo. Até
na região com melhor desempenho, Bolama/Bijagós, quase metade da
população vive com menos de 2 dólares ao dia, e em Gabu a pobreza
absoluta é quase universal, afetando 84 porcento da população. A
vulnerabilidade da população é caracterizada pela pobreza
absoluta: uma extrema ausência de recursos financeiros restringe a
habilidade das comunidades em prover as crianças com assistência de
saúde, educação e um ambiente protegido.
Esse
ciclo de instabilidade e consequente declínio social foi ilustrado
recentemente pelo golpe de estado de abril de 2012. A Guiné-Bissau
foi e continua dependente fortemente de assistência externa ao
desenvolvimento, que representa cerca de 15 porcento do seu PIB. Em
2010, a assistência externa chegou a aproximadamente 57 porcento do
total da receita governamental, financiando mais de 50 porcento do
total de gastos da Guiné-Bissau. Ainda que o início desta década
haja testemunhado algumas melhorias dos indicadores sociais,
informações recolhidas no último ano mostram um decréscimo em
vários âmbitos após o golpe, resultando na suspensão de vários
programas de ajuda externa ao desenvolvimento. A Guiné-Bissau será
incapaz de atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio em
2015.
Reconhecendo
que este país relativamente jovem tem sofrido de recursos limitados,
a negligência de investimentos em áreas críticas, tais como saúde
e educação, tem-se agravado nos últimos anos, afetando
drasticamente as chances de desenvolvimento, atrasando o país. Como
resultado do limitado orçamento para gastos gerais do governo (22
porcento do PIB, de acordo a estimativas – Relatório do FMI de
maio de 2010), o montante alocado para serviços sociais básicos
está entre os mais baixos da África ocidental. Em 2006, por
exemplo, menos de quatro porcento dos gastos governamentais foram
destinados a educação (10 dólares per capita), contra 6,7 porcento
(14 dólares per capita) no Níger. Em 2007, o gasto público com
saúde foi estimado em quatro dólares per capita na Guiné-Bissau,
em contraste com a média de 11 dólares per capita de países com
baixa renda e 34 dólares per capita da região ocidental africana
(Estatísticas da Saúde Mundial, OMS, 2010). Em 2011, o orçamento
alocado para a saúde e educação representou meramente 20,7
porcento do geral, contrariando a recomendação internacional de 40
porcento.
Tomo nota que a
Guiné-Bissau esteja comprometida em reforçar os seus recursos
legais e, em anos recentes, haja adoptado leis e tratados
internacionais importantes. A assinatura do Protocolo Facultativo à
Convenção sobre os Direitos da Criança relativo aos Procedimentos
de Comunicação, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiências e o seu Protocolo Facultativo, no ano de 2013, e do
Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Económicos,
Sociais e Culturais, no ano de 2009, representam progressos
importantes em várias áreas relacionadas ao meu mandato, não
obstante, insto o Governo a completar o processo de ratificação
desses documentos.
A Guiné-Bissau
tem trabalhado activamente junto aos órgãos de monitoramento de
direitos humanos, tendo participado com sucesso do processo de
Revisão Periódica Universal (RPU); envolvendo-se na revisão dos
Órgãos de Tratados das Nações Unidas; e estendendo convite
permanente a todos os Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos
Humanos das Nações Unidas. De acordo às recomendações da RPU, do
Comité sobre Direitos das Crianças e o Comité para a Eliminação
de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, e com o apoio
técnico e financeiro da UNIOGBIS e parceiros da Equipa Nacional das
Nações Unidas, o Governo avançou ao estabelecer marcos legais e de
políticas públicas.
Em 2011, o Governo adoptou a Lei que visa prevenir, combater e reprimir a excisão
feminina (Lei nº. 14/2011), e a Lei da prevenção e combate ao
tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças (Lei nº.
12/2011). O Governo também concluiu a Política Nacional para
Igualdade e Equidade de Género (PNIEG), um marco para promover,
coordenar e dar seguimento a equidade em todos os sectores. A
colaboração com o Comité Parlamentar Especializado sobre Mulheres
e Crianças resultou na adoção pela Assembleia Nacional Popular, da
Lei contra a Violência Doméstica, em Julho de 2013, ainda que falte
a promulgação oficial da Presidência. Recentemente, o Governo de
Transição aprovou o Plano Nacional de Ação contra a Violência
com base no Género (2014-2016), após um amplo diálogo com
organizações de mulheres, defensoras e defensores de direitos
humanos, organizações da sociedade civil e parceiro das Nações
Unidas.
No entanto, são
necessárias medidas adicionais para a incorporação completa da
legislação e normas internacionais na implementação de políticas
públicas nacionais. A legislação frequentemente não se traduz em
garantia de direitos para muitas pessoas Bissau-Guineenses. Há
lacunas graves de implementação legal, incluindo a falta de
promulgação da Lei contra a Violência Doméstica.
Tomo
nota dos esforços envidados para assegurar que a Guiné-Bissau tenha
uma Comissão Nacional de Direitos Humanos que seja verdadeiramente
independente, com suporte financeiro e recursos humanos para actuar.
Nesse sentido, apelo ao Estado que garanta a total adequação do
novo Estatuto da Comissão Nacional de Direitos Humanos aos
Princípios de Paris. Também são necessários investimentos
significativos em recursos humanos e financeiros, particularmente
através da descentralização dos serviços de maneira que estejam
acessíveis à comunidade.
Mulheres
e raparigas
A
desigualdade de género e a discriminação estão entre os
principais fatores de pobreza e vulnerabilidade, particularmente nas
zonas rurais. Esta é uma sociedade extremamente patriarcal, que
historicamente tem sido indiferente aos direitos e às necessidades
das mulheres. Visitando as comunidades rurais, fiquei surpreendida ao
constatar que o bem-estar e a economia das comunidades e das famílias
dependem inteiramente das mulheres.
As
mulheres e as raparigas são responsáveis somente pelo trabalho
doméstico não remunerado, como coletar água e lenha, cozinhar e
cuidar de crianças e doentes, e elas são também as principais
fornecedoras de alimentação e de recursos financeiros. Ainda assim,
elas têm pouco controle sobre os recursos internos ou sobre o
planeamento familiar. Apesar de serem as principais trabalhadoras da
terra como agricultoras e produtoras, a terra não lhes pertence.
Pelo contrário, elas são restringidas a direitos fundiários
secundários, e o direito de uso da terra é obtido apenas através
dos seus maridos e de outros membros masculinos da família.
A
elevada taxa de pobreza entre as viúvas está muitas vezes
relacionada com a discriminação baseada na lei e nos costumes: após
a morte do marido, a viúva não herda o seu terreno nem os seus
recursos, os quais passam a estar sob a responsabilidade da família
do marido. Apesar de serem as principais trabalhadoras da terra,
produtoras de alimentos e dos recursos advindos, as mulheres
solteiras, viúvas ou abandonadas têm menos acesso à terra e menos
oportunidades económicas. Sem direitos garantidos, acesso à terra
ou tampouco recursos produtivos, as mulheres rurais podem facilmente
cair numa situação de pobreza mais acentuada, e enfrentar desafios
ainda maiores para atingir o mesmo nível de subsistência para as
suas famílias.
As
disparidades e a falta de oportunidades para as mulheres podem ser
encontradas em todas as áreas e setores. As mulheres e raparigas
carregam o fardo de cuidar e prover as famílias em situação de
pobreza extrema, e a sua recompensa por uma vida de esforço
incansável é a denegação completa dos seus direitos, tais como o
direito à educação, à saúde e à integridade física.
Em
comparação aos homens, as mulheres sofrem com menos acesso aos
serviços de saúde, maior incidência de HIV/SIDA, níveis
inferiores de escolarização e alfabetização, renda reduzida,
taxas mais altas de desemprego e maiores dificuldades de superação
da pobreza.
Para
agravar mais a sua situação, há uma prevalência generalizada de
violência sexual com base no género no país, e um alto nível de
impunidade. Em todo o país, as mulheres são vítimas de tais
abusos, sem acesso à proteção, justiça ou medicamentos. A
violência física, psicológica e sexual contra as mulheres é
generalizada, mas continua sendo pouco denunciada. A violência
doméstica raramente é levada ao conhecimento das autoridades
judiciais. As normas culturais e os tabus, a ausência de agentes de
segurança e de recursos económicos adequados, muitas vezes
bloqueiam qualquer possibilidade de procurar reparação e justiça
para os responsáveis de tais atos.
A
mutilação genital feminina (MGF), a qual constitui uma agressão à
integridade física das mulheres e raparigas, muitas vezes violando o
seu direito à saúde, também ocorre de maneira generalizada em
certas comunidades. A prevalência dessa prática na Guiné-Bissau
também está diretamente ligada à pobreza. O aumento do número de
casos notificados reflete um retrocesso inaceitável nos direitos das
mulheres. Ao mesmo tempo em que louvo as medidas tomadas nos últimos
anos, tais como a Lei que visa prevenir, combater e reprimir a
excisão feminina, a Declaração adotada pelos Imames após a
Conferência Internacional Islâmica de 2012 para o Abandono da
Mutilação Genital Feminina, ao igual que a assinatura simbólica de
uma fatwa condenando a MGF, deve-se abrir mão de todos os
recursos para garantir que MGF seja erradicada na prática.
As
mulheres jamais poderão ser iguais ou desfrutar dos seus direitos
enquanto persistir a violência com base no género. Ainda que eu
recomende a aprovação da Lei contra a Violência Doméstica e da
Lei contra a Mutilação Genital Feminina. Devem ser envidados
esforços adicionais para assegurar que essas mesmas leis sejam
aplicadas na prática. As comunidades na Guiné-Bissau devem ser
sensibilizadas sobre a existência dessas leis, e as autoridades
locais devem estar à altura de fazer cumprir a lei sempre que
necessário. Campanhas de sensibilização e educação também serão
necessárias para pôr fim às normas culturais discriminatórias e
abusivas, às praticas prejudiciais e aos estereótipos, em
conformidade com a Convenção sobre a Eliminação da Violência
Contra as Mulheres. Tais estereótipos são altamente prejudiciais e
estão na raiz de grande parte da violência, pobreza e privação de
direitos que as mulheres enfrentam – entretanto esses estereótipos
não são inevitáveis ou estáticos. Através de ações coordenadas
de educação, eles podem e devem ser combatidos.
O
nível extremamente elevado de mortalidade materna no país também
constitui uma situação alarmante. A porcentagem de mortalidade
materna da Guiné-Bissau é a oitava mais elevadas do mundo, com uma
estimativa de 790 óbitos maternos a cada 100.000 nascidos. É
deplorável que em 2014, morram duas mulheres por dia ao dar à luz.
Nacionalmente, seis em cada dez mulheres não têm acesso a atenção
qualificada durante o parto, um dos fatores mais importantes para
ultrapassar as complicações durante e após dar à luz. Instalações
insalubres e degradadas, escassez crítica de pessoal de saúde, um
sistema de fornecimento de medicamentos inadequado, barreiras
geográficas, e o custo inacessível permanecem como maiores
obstáculos de acesso ao sistema de saúde.
Outros
fatores que impactam o direito à saúde e à educação das mulheres
são a prevalência de casamentos forçados e gravidez precoce. Em
2011, 31 porcento das mulheres com idades entre 20-24 anos tinham
dado à luz pela primeira vez antes de atingir os 18 anos de idade. A
taxa de gravidez precoce é levemente maior entre adolescentes, 137
nascimentos por 1.000 jovens entre 15 e 19 anos (fonte: UNICEF,
Situação das Crianças no Mundo, 2013). Em 2012, sete por cento das
mulheres com idades entre 20 e 24 anos tinham-se casado antes dos 15
anos, e 22 por cento antes de atingirem os 18 anos de idade (fonte:
UNICEF, Estado das Crianças do Mundo, 2013). Há muito por fazer
para sensibilizar alguns grupos étnicos sobre o impacto negativo
dessas práticas tradicionais ao bem-estar das mulheres. As
autoridades do Estado, os profissionais de saúde, e os agentes de
segurança devem demonstrar um forte compromisso para erradicar todas
as formas de práticas tradicionais nocivas.
O
HIV/SIDA continua sendo um problema considerável na Guiné-Bissau e
a ter um impacto desproporcional sobre as mulheres. Enquanto as
estimativas conservadoras colocam a taxa de prevalência nacional
entre adultos em 5,3 porcento, as mulheres sofrem de forma
desproporcional em relação aos homens: 6,9 porcento entre as
mulheres contra 2,4 porcento. Essas taxas são mais elevadas do que a
prevalência do HIV nas regiões da África Central e Ocidental. A
suspensão do programa do Fundo Global teve um grande impacto em
2013, pois o país sofreu com a falta medicamentos antirretrovirais,
kits de testes e programas de tratamento para prevenir a transmissão
de mãe para filho. Devido à falta de coleta de dados no ano
anterior e a diminuição correspondente nos programas de abordagem
do HIV/SIDA, as taxas atuais provavelmente subestimam a verdadeira
dimensão do problema. Devem ser tomadas medidas adicionais para
garantir que a população tenha conhecimentos mais abrangentes e
corretos sobre a prevenção e o tratamento do HIV/SIDA, e que sejam
tomadas todas as medidas possíveis para a sua prevenção.
Apesar
de constituir o pilar da sociedade guineense, as mulheres na
Guiné-Bissau continuam a estar sub-representadas nos postos de
tomada de decisão, colocando o país entre os estados com pior
desempenho da CEDEAO nesse quesito. O atual Governo de Transição
inclui apenas duas mulheres (comparadas com 28 homens), representando
7,4 porcento do total da população num país onde as mulheres
perfazem 51,5 porcento da população. Esta sub-representação grave
reflete-se também a nível local, da comunidade e do núcleo
familiar, onde as mulheres estão em grande parte impossibilitadas de
participar de forma significativa nos processos de tomada de decisão.
O
país não pode progredir em áreas cruciais como a redução da
pobreza, o desenvolvimento sustentável ou o gozo dos direitos
humanos, se não houver medidas significativas para garantir o
estatuto de igualdade da mulher na sociedade. Essa não é apenas uma
questão básica de justiça e direitos humanos, trata-se também de
um pré-requisito essencial para a melhoria das vidas de todas as
pessoas na Guiné-Bissau. A experiência em vários países
demonstrou que o empoderamento das mulheres é um fator chave no
crescimento económico e desenvolvimento. Este esforço deve começar
já, sem qualquer atraso. Hoje, darei algumas recomendações não
exaustivas para ações prioritárias a esse respeito.
A
fim de progredir na luta contra a mortalidade materna e de respeitar
o direito das mulheres ao mais alto nível possível de saúde, as
mulheres devem ter acesso garantido aos serviços de saúde
reprodutiva e aos cuidados de saúde pré-natal e pós-natal. Ambos
acessos, físico como financeiro, devem ser cuidadosamente prestados,
eliminando por exemplo taxas a usuários e fornecendo serviços de
atenção de saúde mais próximos das comunidades, especialmente nas
áreas rurais.
A
participação política das mulheres em todos os níveis deve ser
melhorada e apoiada sem demora. Embora a presença igualitária das
mulheres nos órgãos de tomada de decisão seja apenas um primeiro
passo à igualdade de género, é um passo necessário para assegurar
que as vozes das mulheres sejam ouvidas em todos os assuntos que lhes
afetem. Devem ser tomadas medidas críticas antes das próximas
eleições, como uma questão de prioridade, caso contrário, será
perpetuada a falta de poder político das mulheres. Apesar do curto
espaço de tempo antes das eleições, deve ser adotado um marco
jurídico para a igualdade de género nas eleições, apoiado por
todos os partidos políticos e pelo Governo de Transição. A
oportunidade e o resultado, são ambos cruciais: a proporção de
mulheres não deve ser aumentada somente nas listas partidárias, mas
também entre os cargos eleitos. Para isso, parece ser inevitável
que o governo e os partidos políticos implementem cotas como um meio
para acelerar o acesso das mulheres aos postos de tomada de decisão.
Não
obstante, enquanto que as cotas podem garantir que as mulheres
estejam presentes no parlamento, não há garantias que as mulheres
serão capazes de usar esse poder de maneira eficaz. Considerando o
histórico limitado de mobilização das mulheres e a integração da
mulher na vida política do país, medidas imediatas devem ser
tomadas para fornecer educação, liderança e outras estratégias
para impulsionar o empoderamento das mulheres. Dada a constante
instabilidade política, isso deveria engajar as mulheres e raparigas
na prevenção e resolução de conflitos, de acordo com a Resolução
1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Seria
particularmente importante prestar todo o apoio necessário
(financeiro e outros) às redes de mulheres e organizações da
sociedade civil, para assegurar que os esforços levados a cabo
partam da base para cima.
Adicionalmente,
a carga de trabalho doméstico não remunerado que as mulheres
desempenham deve ser compartilhada e aliviada, para que elas sejam
capazes de participar nos fóruns de tomada de decisão, de grupos
comunitários à assembleia nacional.
Há
numerosos exemplos de países desenvolvidos, incluindo em situação
de pós-conflito, que conseguiram melhorar a participação política
das mulheres exponencialmente e em um curto espaço de tempo. Eu
sugiro que a Guiné-Bissau aprenda desses esforços ao encarar os
seus desafios, embora as suas medidas devam ser escolhidas
cuidadosamente, embasadas nos contextos social, político e cultural.
Depois
das eleições, o novo Governo haverá de priorizar a garantia da
igualdade das mulheres em todas as esferas da vida, consolidando um
marco legal no qual o papel da mulher em todas as instâncias de
decisão, da Comissão Nacional de Eleições aos governos locais,
seja incrementado, facilitado e apoiado. A revisão das leis de
herança, posse e propriedade da terra também serão uma tarefa
urgente e absolutamente essencial para o novo governo, ao buscar
direitos iguais para mulheres quanto à terra e meios de produção,
pré-requisitos para o empoderamento económico e superação da
pobreza.
Crianças
A
taxa de mortalidade infantil de crianças com menos de cinco anos na
Guiné-Bissau é a sétima mais alta do mundo, com 161 óbitos a cada
1000 recém nascidas em 2011. Tragicamente, uma em cada 10 crianças
morre antes do seu primeiro ano de vida, enquanto que uma em cada
seis crianças morre antes de completar cinco anos de idade.
As
principais causas de morte são complicações pré-natal, malária,
infecção respiratória aguda e diarreia – todas
facilmente preveníveis. Além disso, a malnutrição, que sempre tem
sido o maior problema de saúde na Guiné-Bissau, continua sendo uma
das principais causas subjacentes de mortalidade infantil: 27,4
porcento das crianças com menos de cinco anos sofrem de má nutrição
crónica, enquanto que 6,5 porcento sofreram má nutrição aguda. Em
2013, a situação deteriorou-se ainda mais, parte por causa da
insegurança alimentar, afetando principalmente crianças de seis a
59 meses de vida. Apesar de uma melhora significativa quanto à
prevalência do aleitamento materno (de 38 a 67 porcento entre 2010 e
2012), as práticas de alimentação infantil são uma das causas
para essa situação de subnutrição, especialmente para bebés e
crianças pequenas.
O
trabalho infantil prevalece – em 2010, 57 porcento de crianças de
cinco a 14 anos são exploradas em trabalho infantil (Relatório
sobre o Desenvolvimento Humano – PNUD 2013). Isso reflete o
desespero das necessidades económicas de várias famílias na
Guiné-Bissau, assim mesmo, o trabalho infantil apenas perpetua a
pobreza a médio e longo prazo, uma vez que as crianças não têm
oportunidade de receber uma educação adequada. Estudos substanciais
devem ser desenvolvidos para avaliar a viabilidade da implementação
paulatina de alguns mecanismo de proteção social, ao menos aos
membros da sociedade em situação de maior vulnerabilidade, sendo
que essas medidas podiam reduzir significativamente os incentivos
para o trabalho infantil, garantir em certa medida a segurança
alimentar e a promoção de medidas para a inclusão social. Enquanto
esses passos reduziriam significativamente o trabalho infantil,
também seriam críticos para garantir segurança alimentar e
promover inclusão social.
Senhoras
e senhores,
A
Guiné-Bissau é um país excepcionalmente jovem, com 65 porcento de
população com menos de 25 anos de idade. Portanto, o país deve
buscar a melhoria do bem-estar das gerações mais jovens, que são o
futuro do país. Medidas para implementar o direito e dar educação
para todas as crianças e jovens são particularmente essenciais.
Como uma questão de prioridade, o Estado deve assegurar que todas as
crianças em todas as Regiões do país possam gozar seu direito
absoluto ao ensino primário obrigatório e gratuito, através de
escolas de alta qualidade, acessíveis e sem custos adicionais. Há
de empreenderem-se, com urgência, medidas proactivas para atingir
esse fim. O país deve dar prioridade as suas crianças, a
restruturação do sistema de ensino é uma condição necessária
para o desenvolvimento. A saúde de crianças e mães também tem que
ser tratada como prioritária. Durante a minha visita, eu me reuni
com profissionais do ensino, da medicina e enfermagem, que trabalham
incansavelmente para o seu povo, apesar de ficarem sem receber
salários por vários meses. Eu recomendo os seus esforços, mas faço
um apelo ao Estado para garantir que profissionais de sectores
essenciais, como a saúde e educação, recebam seus salários de
maneira consistente, como uma questão prioritária.
Todas
as autoridades do Estado devem atuar com a visão de garantir que as
crianças, jovens, e as futuras gerações tenham uma vida melhor.
Medidas de curto prazo, decisões de alcance limitado com vistas a
satisfação de interesses pessoais sobre a construção da nação e
aproveitamento universal das oportunidade e direitos, ameaçarão
gravemente o futuro do país e não garantirão a estabilidade
política e desenvolvimento equitativo, o desenvolvimento sustentável
que o povo da Guiné-Bissau merece.
Senhoras
e senhores
O
país tem uma oportunidade de progredir. Contudo, isso depende de um
acordo de visão comum, uma visão que mova os políticos nacionais
para longe de disputas de poder a curto prazo e alianças
oportunistas, ao invés de avançar em direção a projetos de
bem-estar de toda a sociedade – em particular da maioria da
população que vive na situação odiosa de pobreza.
Para
assegurar o desenvolvimento sustentável do país, é essencial lutar
contra a impunidade e fazer com que as autoridades verdadeiramente
prestem contas. Para assegurar medidas efectivas para a justiça,
remediação e reconciliação na sociedade, a Guiné-Bissau deveria
considerar seriamente a criação de uma comissão de inquérito
internacional, apoiada pelas Nações Unidas. A coesão social, paz e
estabilidade também dependem da existência do estado de direito,
com independência do poder judiciário e modernização das Forças
Armadas sob o controle civil.
As
políticas publicas têm que buscar fornecer as ferramentas
necessárias para melhorar a vida das pessoas que vivem em situação
de pobreza, e que constituem a maioria de população da
Guiné-Bissau. Isso significa que os investimentos sociais em áreas
como a saúde e educação não devem mais serem negligenciados. A
proporção do (embora limitado) orçamento do Estado que é
destinada aos gastos com saúde e educação deve ser aumentada
consideravelmente para assegurar oportunidades concretas de
desenvolvimento. Esse propósito pode ser atingido através da
transferência de fundos de sectores menos prioritários, como gastos
militares, que não sejam essenciais ao gozo dos direitos. Tal
balanço de gastos é de obrigação legal do Estado, sob vários
tratados, como o Pacto Internacionais de Direitos Económicos,
Sociais e Culturais e o Comité sobre os Direitos da Criança. A
Guiné-Bissau deve utilizar o “máximo de recursos disponíveis”
na realização dos direitos económicos e sociais, como a saúde e a
educação, Em última instância, o país não pode desenvolver-se
sem investir no seu bem mais vital: a sua população.
Também
deve-se prestar particular atenção ao sector económico majoritário
da agricultura, do qual a maioria da população depende para as suas
vidas. Ainda constata-se uma produtividade extremamente baixa em
agricultura e a dependência da monocultura (a castanha de caju), o
que cria um grande risco de insegurança alimentar, e até fome, se a
colheita falhar ou o preço de mercado baixar. Apesar do nível de
produção do sector agrícola, a produção local é insuficiente
para alcançar as exigências nacionais devido a vários factores,
incluindo infraestruturas de transporte precárias, um sistema de
mercado informal subdesenvolvido, falta de acesso ao crédito,
insumos agrícolas e equipamentos para irrigação. Para superar o
alto nível de insegurança alimentar e o flagelo da má nutrição
no país, é crucial dar soluções a esses desafios e a dependência
da colheita da castanha de caju.
O
Estado deve reforçar o investimento na agricultura e economia rural
para aumentar a produtividade. Esse sector pode ser um motor do
crescimento sustentável da economia, porém isso não pode acontecer
sem o reforço do desenvolvimento da infraestrutura agrícola e
rural, o que também poderia contribuir para aumento da capacidade
para a produtividade, melhorando condições de vida e a crescente
segurança alimentar.
Enquanto
o desenvolvimento de infraestruturas é essencial, a sustentabilidade
ambiental deve ser o objetivo. Na Guiné-Bissau, os recursos
florestais e a pesca estão em risco de esgotar. Outras medidas, mais
adequadas, devem ser adoptadas para assegurar a preservação dos
recursos naturais para as gerações futuras e cuidar da degradação
do meio ambiente. Ademais, as autoridades devem tomar medidas
urgentes para evitar o esgotamento sistemático dos recursos
florestais e de pesca por actos de corrupção, atualmente ocorrendo
com impunidade. Tais actos devem ser prevenidos e investigados em
todos os níveis. Os recursos naturais do país pertencem legalmente
a toda população da Guiné-Bissau, e devem fornecer comida e
condições de trabalho à população por muitas gerações futuras.
Aquelas pessoas que encontrem-se esgotando esses bens para o seu
próprio lucro, em detrimento do futuro do país, devem ser
responsabilizados enquanto uma prioridade para o país.
Senhoras
e senhores
Eu
gostaria de aproveitar esta oportunidade para lançar um forte
chamado à comunidade internacional para continuar e reforçar a
assistência internacional e cooperação para o beneficio do povo da
Guiné-Bissau. Tendo em conta a grave situação de pobreza na
Guiné-Bissau, todos os Estados que estejam em condições de apoiar,
devem fazê-lo através de assistências financeira e capacitação
técnica. A recente situação política colocou isso em risco, mas a
comunidade internacional deve redobrar esforços para assegurar que o
povo da Guiné-Bissau, tão necessitado, não seja mais penalizado
pelos actos das elites políticas e militares.
Um
grande esforço deve ser feito no sentido de garantir, em paralelo
com ajuda dada para reerguer as instituições do Estado, que as
organizações da sociedade civil continuem a receber a assistência
que precisam. Apoiar e favorecer as organizações da sociedade civil
ativas no país é uma forma de garantir o controle efetivo aos
cidadãos e canalizar de forma adequada os recursos aos segmentos
mais pobres de população. Apesar de todos os obstáculos, mutas
organizações da sociedade civil são muito efectivas em assistir e
construir o sustento e capacidades das pessoas que conseguem
alcançar, frequentemente com projetos inovadores. Recursos
adicionais são necessários para permitir que essas organizações
aumentem seu impacto, cobertura e apoio e a transição de micro
projetos para uma cobertura abrangente.
Senhoras
e senhores,
Por
fim, eu acredito que as recomendações que fiz hoje não vão apenas
ajudar a reduzir a pobreza e estimular o desenvolvimento sustentável
e o gozo dos direitos humanos na Guiné-Bissau de maneira mais
efectiva, mas também diminuirão consideravelmente o potencial de
futuras tensões e conflitos. Se a pobreza e a desigualdade de género
não forem tratadas como uma questão prioritária, e a impunidade
sistemática não for combatida, as oportunidades para o
desenvolvimento significativo e a coesão social serão ameaçadas.
Se
as autoridades, incluindo as elites políticas e militares, não
priorizarem a construção da nação e respeito pelos direitos
humanos em detrimento de ganhos pessoais, irão inevitavelmente
desenvolver um aumento do ressentimento por parte da maioria da
população, impedindo a consolidação da paz, estabilidade política
e desenvolvimento.
E
vou terminar, reiterando o meu compromisso de continuar o diálogo
iniciado nesta visita. Eu gostaria de mais uma vez agradecer ao
Governo da Guiné-Bissau pela sua excelente cooperação durante a
minha visita. Espero poder continuar a trabalhar com o Governo num
espírito de colaboração para a implementação das recomendações.
--- // ---
(nota editor: Por gentileza da LGDH. Djarama)
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