Menos de 10% da despesa mundial em investigação em saúde é dedicada aos mais graves problemas de saúde que afetam mais de 90% da população do mundo. As doenças negligenciadas - sejam as chamadas doenças raras sejam sobretudo as grandes epidemias do mundo pobre, como a malária ou o ébola - são o rosto de uma biopolítica global conduzida pelo primado do lucro da indústria farmacêutica.
Há surtos de ébola em África desde, pelo menos, 1976. Sucedesse isto em Inglaterra, nos Estados Unidos ou no Japão e há muito se teriam dado os passos para a produção de uma vacina. O problema do ébola é ser, por agora, uma doença de africanos em África. No momento em que ela foi contraída por dois profissionais de saúde norte-americanos e por um missionário espanhol, o mundo começou a mobilizar-se. Porque ganhou medo.
O Banco Mundial prometeu logo 200 milhões de dólares aos quatro países africanos mais afetados e Obama assumiu, na cimeira com cinquenta líderes daquele continente, o compromisso de atribuir 33 mil milhões de dólares para ajuda às economias africanas. É mais do que ironia que os Estados que agora prometem ajuda sejam os mesmos que impuseram uma redução para metade, entre 2012 e 2014, do orçamento da Organização Mundial de Saúde dedicado a respostas a surtos epidémicos.
Bastou um missionário espanhol e dois profissionais de saúde norte--americanos. Os 1500 africanos mortos neste surto mais recente - e os muitos mais que os números oficiais não registam -, esses são estatísticas sem nome e sem rosto. A sua falta de poder económico faz deles uma mancha que alastra e ameaça mas nunca um mercado que cresce e estimula. E os alarmes de interesse dos potentados globais do farmoquímico disparam quando há mercados, não quando há manchas. Além do mais, os africanos infetados são guineenses ou liberianos, não são espanhóis nem americanos. Por isso se louvou a prontidão da mobilização de meios - incluindo aviões medicalizados e administração de medicamentos ainda não aprovados - usados pelos governos espanhol e americano para resgatar e salvar os seus. Mas não se disse que o avião que trouxe Miguel Pajares e uma outra freira com passaporte espanhol para Madrid deixou em terra duas missionárias, uma congolesa e outra guineense, que trabalhavam no mesmo hospital de Monróvia.
O dinheiro prometido pelo Banco Mundial é um penso rápido numa chaga que os programas de ajustamento estrutural que essa organização impôs, juntamente com o FMI, nestes mesmos países africanos nos anos 80, alimentaram multiplicando pobreza e condenando à inexistência sistemas públicos de saúde capazes para servirem as suas populações.
E os milhões prometidos por Obama são dados (serão?) não a pensar no direito dos liberianos ou guineenses à saúde e ao bem-estar mas sim na resposta ao medo de contágio dos americanos, sempre apologistas da liberdade de circulação de tudo menos dos pobres que fogem da morte nas suas terras. A ajuda pública ao desenvolvimento tem esse rosto cínico de biopolítica de contenção dos pobres, aquietando-os, castigando a sua turbulência e sobretudo prevenindo supostos estragos que possam trazer ao modo de vida instalado no centro do mundo.
Tal como sucedeu com a sida, o ébola terá de matar gente rica, dos bairros luxuosos das nossas cidades, para que enfim se ponha o conhecimento científico existente ao serviço de quem sofre. Até lá, o ébola - como o terrorismo ou a perda de biodiversidade - será um pretexto para o mundo rico intensificar a contenção dos pobres no seu gueto global.
(in: dn - por José Manuel Pureza)
(in: dn - por José Manuel Pureza)
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