A
Guiné Bissau vista do céu parece uma hipótese de paraíso. Mas, o drama
da pobreza, da corrupção, impede qualquer deslumbramento continuado
A
Guiné Bissau vista do céu parece uma hipótese de paraíso. Os campos de
arroz são verdes e cintilam no seu fulgor aquático. Na aproximação a
Bissau, o mar é omnipresente e leva a sua imensidão a toda a terra.
Mesmo no solo, olhando as pessoas, desde logo a sua diversidade – de
faces, de estaturas, de línguas, de modos de ser – parece transmitir uma
extraordinária harmonia, pelo menos na superfície, o que, não sendo
toda a existência, já é uma verdade. Mas, assente a poeira, o drama da
pobreza quase endémica, da impunidade face ao crime, da vulnerabilidade
ou da inexistência das instituições, da corrupção, impede qualquer
deslumbramento continuado.
Na última década, acentuando as dificuldades estruturais do país, os
conflitos militares e a subjugação ao narcotráfico tornaram a Guiné
Bissau num case study internacional pelas piores razões. Exemplo de
“Estado falhado”, de “Estado frágil”, de ausência de Estado. Exemplo
também da incapacidade e da ineficácia das organizações internacionais
mais poderosas, como as Nações Unidas e a União Europeia, cujas
operações nos últimos anos alimentaram um verdadeiro exército, rotinado e
necessariamente descrente, de funcionários e de consultores.
O recente episódio dos refugiados sírios chegados a Lisboa provindos
de Bissau, num acto quase de pirataria aérea sobre um avião da TAP, é
apenas uma pequena nota de rodapé.
Muitos antes desse episódio, há por exemplo a história dos
proprietários de um hotel numa das ilhas guineenses que um dia vêem
chegar um pequeno avião e dele desembarcar um grupo de homens que, a
troco de uma mala com dinheiro, os força a abandonar a sua casa, o seu
negócio e as suas vidas, abandonando a ilha imediatamente no mesmo avião
em que os outros tinham chegado – porque afinal aquela ilhota era um
local conveniente para o tráfico da cocaína sul-americana a caminho da
Europa.
Ou a história dos colombianos milagrosamente detidos no aeroporto de
Bissau com um carregamento de 900 (!) quilogramas de droga e que poucas
horas depois estavam em liberdade e em paradeiro desconhecido.
Ou a historia da juíza que se surpreende ao ver o criminoso que
acabara de condenar a uma forte pena de prisão por um crime grave
cruzar-se com ela na rua e dirigir-se-lhe em tom ameaçador. Não deveria
contudo surpreender--se: durante muitos anos (ainda hoje?), a Guiné foi
provavelmente o único país do mundo a não dispor de uma prisão. A única
existente havia sido destruída no último conflito militar na cidade de
Bissau e nunca reconstruída... Duas celas na sede da polícia – de uma
polícia de investigação criminal sem armas suficientes, sem
computadores, sem algemas, sem veículos – serviam então de instalações
prisionais, impossíveis de descrever no papel.
Triste ironia: a terra de onde chegam os refugiados sírios é a mesma
terra onde muitos guineenses são afinal refugiados no seu próprio país e
fora dele.
(Miguel Romão, Prof. da Faculdade de Direito da Uni. de Lisboa) (in: jI)
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