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Joseph Pulitzer

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Do livro "Um país adiado"

Para a compreensão de um ciclo que é imperioso fechar, para o bem-estar e liberdade do povo guineense


SOBREVIVER NA POBREZA

Impunidade e insegurança. São temas recorrentes sobre a endémica doença da Guiné-Bissau, um pequeno mosaico de etnias e culturas, em permanente instabilidade política e militar, independente há 40 anos, sempre dependente da ajuda internacional. Sobrevive no limiar da pobreza, um dólar “per capita”/dia. Está no fim da linha. Quantos mais anos serão precisos para ser considerado um Estado digno desse nome, com Paz, Justiça, respeito pelos Direitos do Homem? Um enigma. Como enigmática continua a ser a morte de Cabral, sempre atribuída ao colonialismo.

A História encarregou-se de desmontar a ignomínia: o engenheiro agrónomo foi morto em Conacry, por três homens armados do seu próprio partido, o PAIGC. “Quando for assassinado, sê-lo-ei por um homem do meu povo, do meu partido, provavelmente fundador, ainda que guiado pelo inimigo”. A premonitória confidência feita ao poeta Manuel Alegre, na altura exilado em Argel, constitui uma tese sobre as circunstâncias e o móbil do crime.

O mistério ainda não foi completamente desvendado (1). Uma certeza ficou gravada para sempre: Na noite de 20 de Janeiro de 1973 não foi só Cabral que tombou, foi também o país, um dos mais pobres do Mundo, cerca de 1,5 milhões de habitantes, sedentos de pão e justiça, onde se morre por quase nada, sem direito à dignidade e felicidade prometidas nas matas de Lugadjol, na região de Boé.

O sonho foi uma quimera e o medo tomou conta das consciências. Mais ainda depois do último golpe (12 de Abril de 2012) protagonizado pelos militares sempre disponíveis a substituir o poder político através das armas. Ontem como hoje controlam tudo, os ministérios e as repartições do aparelho de Estado, fomentam um clima de intrigas e intimidação, nepotismo, corrupção e narcotráfico internacional. “O tráfico de droga, para além de servir uma forma de enriquecimento ilícito e principal factor de instabilidade política na Guiné-Bissau, devido às ligações entre certos elementos das Forças Armadas e as redes de tráfico de droga, servem de mecanismos adicionais pelos quais os oficiais superiores têm vindo a consolidar o seu poder”. (2)

“As paredes têm ouvidos”

Sem direito a manifestação, reunião, Imprensa condicionada e polícias em roda livre, a cidadania é uma ficção. Após o golpe de Estado de 12 de Abril de 2012 a situação agravou-se consideravelmente. “As paredes têm ouvidos”, diz-nos um advogado sem dinheiro para “quase nada” e sem grande esperança em dias melhores.

“Estamos a ser espoliados dos mais elementares direitos de cidadania”, refere em voz baixa. Por causa do Serviço de Informações do Estado e da temível PIR-Polícia de Intervenção Rápida formada em Angola? Ou pelas detenções sem mandado de captura, espancamentos feitos com base em meras denúncias? Deixemos as dúvidas e apontemos uma certeza: até hoje a Guiné-Bissau não soube erguer-se das sequelas do colonialismo e o Estado está à beira do colapso.

O drama só não é maior porque os países doadores vão abrindo os cordões à bolsa – até quando? – e os programas de milhões da ajuda internacional vão atenuando a dor deste povo humilde e sofredor, sem contar com o espírito solidário das verdadeiras organizações não governamentais. São os professores, funcionários públicos, médicos e enfermeiros sem direitos a coisa nenhuma (a começar pelo direito ao salário) mais os cooperantes internacionais e os voluntários da lusofonia que, muitas vezes, trabalhando no limite das suas capacidades levam uma nesga de esperança às populações das aldeias, tratando doentes, fazendo medicina curativa dentro do possível, ensinando em condições precárias os primeiros passos da vida aos mais novos.

Toda esta gente faz autênticos milagres para atenuar o desastre económico e social. Caso contrário os pilares do país tinham desabado. Se não existissem os programas de desenvolvimento e a preciosa ajuda de muitos homens e mulheres do mundo inteiro a este povo magnífico – até na dor aprendeu a sofrer de forma contida – a Guiné-Bissau já não existia como país. Tinha colapsado e desaparecido do mapa.

Como foi possível um punhado de políticos e militares saídos da luta de libertação terem submetido o país à mais completa tirania e subdesenvolvimento, sem água, luz, saneamento básico, escola para todos, habitação decente? E o que dizer da total inoperância por parte das autoridades judiciárias e de segurança na negação dos direitos das crianças (3) e das mulheres, cujos exemplos mais temíveis continuam a ser a mutilação genital feminina (4) mais o casamento precoce e forçado a menores de 18 anos?

E que explicação dão os seguidores de Cabral - que todos reclamam como herdeiro e herói - pelo facto de terem dirigido a sua acção através de golpes e contragolpes, fomentado a guerra civil - até o Hospital 3 de Agosto desenhado pelo arquitecto Mário de Oliveira destruíram - e cometido atropelos em série aos mais elementares direitos dos cidadãos?

Tudo foi possível porque a maior parte dos antigos combatentes do PAIGC sabiam tudo sobre estratégia militar mas não possuíam estatura, conhecimento, experiência política, muito menos um programa de governação do país. Cabral “sonhou muito mais do que isto”, confirma o cineasta Flora Gomes, autor de vários documentários sobre a guerra de libertação, entre os quais, “Mortu Nega”, filmado em 1988. Sem ele, diz Flora Gomes, “ninguém tinha óculos para ver onde estava o problema. Muita gente que estava com ele na guerra não estava preparada para as exigências”. (5)

Jogos de Poder

Em vez de regressarem aos quartéis como seria expectável e normal na construção de um Estado de Direito, os militares optaram por disputar o Poder e deste modo, reduziram a cinzas as esperanças de uma vida melhor prometida através da luta de libertação.

Neste quadro, continua actual a mensagem de Ano Novo proferida em Janeiro de 1973 por Amílcar Cabral (6) aos camaradas e compatriotas: “As preocupações com a guerra e o trabalho político não devem, no entanto, fazer-nos esquecer ou subestimar a importância das nossas actividades económicas, sociais e culturais, fundamento da vida nova que estamos em vias de criar nas regiões libertadas. Devemos todos, mas principalmente os quadros especializados nestas questões, prestar a maior atenção aos problemas da economia, da saúde, da assistência social, da educação e da cultura¸ para sermos capazes de enfrentar a nova situação que a luta está em vias de criar” (…)

Cabral viu tudo antes do tempo e acabou por ser assassinado poucos dias após o discurso, a 20 de Janeiro de 1973. Desde então até agora sucederam-se os espancamentos, perseguições, assassínios políticos. Nos últimos anos, a escalada de violência aumentou contra opositores políticos, a corrupção e o tráfico de drogas foi alastrando na mais completa impunidade, as Forças Armadas assumiram-se como a “guarda pretoriana” do regime, controlando a vida política, económica e social.

Como referiu recentemente (7) a magistrada Lucinda Barbosa, ex-directora da Polícia Judiciária da Guiné-Bissau, entre 2007 e 2001, os governantes nunca estiveram interessados numa profunda reforma das Forças Armadas e adiaram sempre a resolução do problema.

O resultado está à vista, com alguns militares envolvidos em negócios ligados ao narcotráfico internacional, cujo caso mais recente foi protagonizado pelo almirante Bubo Na Tchuto (8), um dos mais destacados membros das Forças Armadas da Guiné-Bissau, extraditado há cerca de um ano para os Estados Unidos após ter sido preso numa operação planeada por uma brigada de combate ao narcotráfico norte-americana em águas internacionais junto à zona marítima de Cabo Verde.

Nesta guerra suja ninguém fica bem na fotografia. Se os militares traíram as esperanças depositadas com a independência e os sonhos de uma vida melhor aos cidadãos, a generalidade dos políticos não lhes ficou atrás. Em vez da gestão rigorosa e transparente da causa pública, envolveram-se numa teia de cumplicidades, corrupção e compadrios. O Estado é uma ficção. Ao fim de 40 anos de lutas e golpes palacianos os sucessivos governos foram minando a desconfiança dos eleitores, afastando os quadros mais bem preparados e capazes de devolver a esperança. A maior parte deles vive fora do país, acompanham de perto a trágica situação económica, social e política.

Alguns, com experiência governativa e prestígio internacional, têm vontade de voltar e participar na sua reconstrução, mas sem futuro à vista, segurança pessoal e das suas famílias adiam o eventual regresso. Alguns guineenses sonham com a refundação do Estado assente em novos pilares e estruturas capazes de restaurar a paz, confiança, atracção de investidores nacionais e internacionais, criação de empresas e emprego.

Talvez seja uma quimera. As eleições – que, provavelmente não vão resolver coisa nenhuma - têm sido sistematicamente adiadas. Já estiveram marcadas para Novembro de 2013, depois para 16 de Março de 2014. O recenseamento eleitoral foi pago a peso de ouro por Timor-Leste, mas devido a “alegados atrasos no recenseamento eleitoral” o calendário voltou a sofrer adiamentos: desta vez para o dia 13 de Abril. Num país adiado tudo é possível.

Não existem certezas, antes subsiste um clima de cepticismo e desconfianças. O último relatório das Nações Unidas publicado em Novembro do ano passado apenas corrobora documentos anteriores. “A situação social e económica continuou a deteriorar-se e não existiram processos significativos na defesa dos Direitos Humanos e luta contra a impunidade”. O burlesco episódio ocorrido no dia 10 de Dezembro de 2013 com o voo da TAP e cuja tripulação foi obrigada a permitir a entrada de 74 sírios com passaporte comprovadamente falso foi mais tiro no pé. O caso lançou um enorme coro de críticas na União Europeia e Portugal, tendo o ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, definido os acontecimentos como “próximos de actos de terrorismo”. A Guiné-Bissau ficou mais isolada do Mundo. Depois da droga e do tráfico de pessoas até os próprios guineenses sentem vergonha do país onde nasceram. A Guiné-Bissau é um “Estado falhado” (9). O sonho de Cabral continua por cumprir. Até quando?


(1)   In “Conversas sobre Cabral”, de autoria da jornalista Diana Andringa, Jornal Público, Janeiro de 1993.
Muitas nuvens pairam sobre as circunstâncias da morte de Amílcar Cabral. Se a autoria moral do crime pertenceu à PIDE também não restam dúvidas sobre o autor do primeiro tiro, disparado por Inocêncio Kani, veterano da guerrilha, ex-comandante da Marinha do PAIGC. Sobre a morte de Cabral existem várias fontes documentais, bibliográficas, entrevistas com antigos companheiros de Cabral na luta pela independência. Pela sua importância e interesse cita-se, como exemplo, excertos de uma conversa travada com Manecas dos Santos. “Os raptores eram gente do próprio PAIGC, virada contra a direcção do Partido por elementos infiltrados, manobrados pelos portugueses, muitas vezes para tal libertados das prisões, por vezes do próprio Tarrafal – que apareciam em Conacry ou nas zonas libertadas, dizendo ter desertado, ou fugido das prisões, e que os combatentes recebiam de braços abertos”(…) “Era impossível dizer a um africano que se apresentava: ‘Vai-te embora, nós não confiamos em ti, és um agente da PIDE.’ Era impossível.”, explicou-me Manecas dos Santos. “Tínhamos de tomar as precauções necessárias, investigar aquilo que fosse possível, mas não podíamos recusar a vinda de nacionalistas que se queriam juntar a nós. Não era um procedimento aceitável.” Houve portanto infiltrações e, segundo Manecas, “tudo leva a crer que, na base dessas infiltrações, esteve o assassinato de Amílcar Cabral.”

   (2)   Relatório sobre a situação dos Direitos Humanos na Guiné-Bissau 2010/2012 produzido pela Liga Guineense dos Direitos Humanos.

    (3) Conferência internacional dedicada à impunidade realizada em Dezembro de   2013, em Bissau, pela Liga Guineense dos Direitos Humanos apresentou o relatório “40 Anos de Impunidade na Guiné-Bissau”, resultante de um trabalho de campo realizado ao longo de 2013. A coordenação deste estudo esteve a cargo do jornalista e escritor Pedro Rosa Mendes. Ao logo de quase uma centena de páginas é consensual a constatação de que “a sociedade guineense é vítima de uma impunidade de Estado – pela ausência deste – e que as diferentes manifestações da impunidade decorrem, em primeiro lugar, da fragilidade das instituições do Estado, que deixou de assegurar funções de soberania como a justiça e a segurança. O Estado já não cumpre a sua responsabilidade. Sobre as crianças o relatório traça um quadro preocupante: “Cumulativamente às formas de violência resultantes ou inerentes à pobreza, a brutalidade e crueldade dirigida aos mais novos e desprotegidos ultrapassa o admissível e humanamente tolerável. A violência contra as crianças é, aliás, uma área que revela alguns dos aspectos mais chocantes da equação entre autoridade e tradicional, atraso cultural e desagregação social. Grave, também, é a denúncia de que o poder judicial e as autoridades policiais não agem ou agem em favor dos que brutalizam de várias formas os mais pequenos”.

   (4) in “Textos Políticos”, de Amílcar Cabral, edições Afrontamento, 1974. Reedição de uma publicação clandestina impressa a offset e editada pelo grupo responsável do Boletim Anti-Colonial-BAC

    (5) in Jornal Público, dia 29 de Setembro de 2013.

  (6) in Jornal Negócios, 25 de Outubro de 2013. Na mesma entrevista, a ex-directora da  PJ da Guiné-Bissau acusa os militares de cumplicidade com o tráfico de drogas internacional, revela as ameaças de morte pelos generais e explica as razões pelas quais decidiu abandonar o país onde nasceu, estudou e trabalhou. "Entendi que as ameaças eram demasiadas. Entendi que aquelas ameaças não eram só para mim e podiam descambar. As ameaças eram feitas em reuniões por generais como o Indjai [António Indjai, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas], o Bubu [José Américo Bubu Na Tchuto, chefe da Marinha] e outros. Sei que o Indjai teve reuniões com o antigo presidente, já falecido, dizendo que eu estava a persegui-lo. Entendi que já não havia apoio. No início, as minhas filhas viviam lá comigo. Depois acabei por mandá-las para aqui [Portugal]. Porque, estando lá, com as minhas filhas ao lado, se não fosse apanhada, podiam ser elas a pagar. Quero voltar, mas de momento acho que é bom evitar. Há momentos em que uma pessoa, por mais que seja valente, não pode lutar contra alguém que não tem um raciocínio lógico das coisas. Decidi dar algum tempo para ver se a situação melhora. Ninguém é herói para estar aí a enfrentar coisas que são impossíveis.  Na mesma entrevista, a magistrada Lucinda Barbosa diz mais: "A reforma das Forças Armadas é a que gera mais instabilidade no país, porque eles [os militares] têm armas e utilizam-nas. Acho que já não temos Forças Armadas porque os que lá estão, infelizmente, estão a estragar o nome dos nossos antigos combatentes. Se formos recensear os antigos combatentes que ficaram nos quartéis, não chegam a 20%. Muitos dos que agora são militares, em 1998 eram delinquentes. Os combates, em 1998, eram na zona onde havia uma prisão e eles evadiram-se e entraram nas forças armadas. Para mim, nem vale a pena termos militares. Basta preparar bem os polícias e refundar a Guiné-Bissau."

     (8) in Jornal Público, 5/4/2013.
 Além de Bubo Na Tchuto, um dos militares da Guiné-Bissau apontados como estando envolvidos no narcotráfico (segundo o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos) foi igualmente responsabilizado judicialmente por Washington por tráfico de droga, o chefe de Estado-Maior da Força Aérea, Ibraima Papa Camará. Apesar de estar indiciado continua no poder ao lado do chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas, general António Indjai, responsável máximo das Forças Armadas em Abril de 2010 depois de destituir Zamora Induta e nomear Papa Camará, líder do golpe de Estado em 2012. 

   (9) in Revista Visão, nº 1085, 19 de Dezembro de 2013,  declarações  de Fernando Ká, presidente da Associação Guineense de Solidariedade Social. 



  - C/ a devida vénia e agradecimento, apesar da permissão do seu autor, o jornalista Manuel Vitorino.
  - Livro lançado no passado dia 10 Abril, da editora "Orfeu"



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