As disputas incessantes entre a classe política e a elite militar guineense tornaram um país com potencial um dos mais pobres do mundo
É
um país cujo passado não parece deixar margem para algum outro futuro,
um país pequeno, com apenas 1,6 milhões de habitantes, e que assim mesmo
ilustra na perfeição como as divisões étnicas e os jogos de poder podem
favorecer uma minoria desonesta enquanto a maioria se vê entregue à
miséria. No entanto, e quase quatro décadas após a independência, os
guineenses mostraram no passado domingo que continuam a sonhar com a
soberania democrática e acorreram às urnas em números nunca antes
registados na história da Guiné-Bissau.
Saudadas pela generalidade dos observadores internacionais que as
acompanharam, as eleições gerais inspiraram confiança pelo ambiente de
"paz e tranquilidade" em que decorreram. Contudo, os observadores
continuam cépticos de que o seu sucesso seja o suficiente para fixar um
rumo que permita ao mais instável dos países de língua portuguesa
combater uma situação de aviltante pobreza, com uma enorme dívida
externa e uma economia que depende fortemente de doadores
internacionais.
Seja como for, o passo dado no dia 13 comprova - como assinalou
Joaquim Chissano, o chefe da maior delegação entre os parceiros
internacionais, a União Africana - o claro desejo dos guineenses de
conseguirem uma "mudança não apenas de liderança, mas da maneira de
viver", e anima a perspectiva da restauração da ordem constitucional ao
mesmo tempo que estimula um reforço da ajuda externa e permite amparar a
economia.
ciclo de instabilidade
Muitos anos de agitação política enfraqueceram as instituições
governamentais, devastaram a economia e fizeram de um país que em tempos
chegou a ser dado como um modelo potencial para o desenvolvimento no
continente africano um dos mais pobres do mundo, com a população a viver
na miséria, altamente subnutrida e quase sem acesso a cuidados de
saúde.
O impacto da crise política na sequência do golpe militar de Abril de
2012 aliado à queda a nível global dos preços da castanha de caju
(principal produto de exportação da Guiné-Bissau) no mesmo ano,
fragilizou a tal ponto a economia que quase metade da população ficou
sem ter como assegurar a sua alimentação, com as famílias a saltarem
refeições ou a serem forçadas a desfazer-se do gado para poderem
sobreviver até à colheita seguinte. Um relatório elaborado em Dezembro
de 2013 em conjunto pelo Programa Alimentar Mundial, pela Organização
para a Alimentação e Agricultura, pelo Plano Internacional e pelo
Instituto Nacional de Estatística da Guiné-Bissau constatou que apenas
7% das famílias tinham a alimentação assegurada e que 64% dos lares
enfrentavam problemas graves de escassez de alimentos.
Perante o cenário de disputas incessantes entre a classe política e a
elite militar, a mão da ajuda externa recolheu-se, adiando um
contributo vital para a sobrevivência dos guineenses. A desconfiança em
relação à capacidade dos dirigentes de assumirem um compromisso alargado
para trazer paz e tranquilidade aos guineenses fica bem patente no
facto de, desde a independência, em 1974, nenhum presidente ter
conseguido levar até ao fim o seu mandato.
Num país muito dependente das culturas primárias e de uma agricultura
de subsistência que procura ainda recompor-se da guerra civil - que, no
final da década de 1990, foi responsável pela morte de milhares de
pessoas, deixando tantas outras feridas ou deslocadas -, os serviços
públicos desmoronaram-se e operam de forma caótica e ineficiente, os
profissionais de saúde e os professores convocam greves umas atrás das
outras, enquanto o tráfico de droga deixou o país à mercê das suas lutas
de poder.
os militares e o narcotráfico
As Forças Armadas comprometeram-se a respeitar o processo eleitoral.
Contudo, o seu historial de intromissão na vida política não dá aos
guineenses motivo para confiarem nas suas promessas. Há dois anos, entre
a primeira e a segunda volta das presidenciais, o exército silenciou a
população e fez cair o governo de Carlos Gomes Júnior - líder da
principal formação política do país, o PAIGC (Partido Africano da
Independência da Guiné e Cabo Verde) -, na sequência do triunfo com
quase 49% dos votos e quando tudo apontava para a sua eleição como
presidente.
A perspectiva que ameaçava as Forças Armadas era a de uma reforma nas
suas hierarquias, planeada para reduzir a influência da etnia balanta -
a maior do país, representando um quarto da população guineense - na
estrutura militar. É pouco provável que Nuno Nabiam, um independente da
etnia balanta ao qual são atribuídas ligações à cúpula militar, consiga
vencer o candidato do PAIGC, José Mário Vaz. Não há nada, portanto, que
faça prever que desta vez os militares irão respeitar a vontade popular.
O que parece claro, como sublinhou Elisabete Azevedo-Harman,
investigadora associada do think tank britânico Chatham House, é que a
reforma das Forças Armadas se mostrou uma prioridade "crucial não apenas
devido à permanente interferência dos militares na política do país,
mas também devido ao problema do narcotráfico".
A Guiné-Bissau tornou-se um pólo no esquema de contrabando de cocaína
da América Latina para a Europa, com as Forças Armadas a operarem como
cartel, enquanto os seus líderes enriquecem e garantem que o país não
tem condições de encontrar uma solução política que possa contrariar o
seu esquema negocial. Isto leva hoje grande parte dos analistas a
defenderem que não há verdadeira esperança para a pequena ex-colónia
portuguesa se não houver um compromisso internacional que resgate a
população do aperto que lhe impõe o exército.
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