As eleições assinalam o regresso à democracia, após o derrube do governo de Carlos Gomes Júnior, Cadogo. Para que a palavra fosse dada aos guineenses contribuíram a pressão internacional, o isolamento das autoridades pós-golpe e as dificuldades financeiras de um país em que as Forças Armadas têm sido instrumento de desestabilização.
Os maiores desafios chegarão quando forem conhecidos os resultados da vontade de 775 mil eleitores chamados a escolher entre 13 candidatos presidenciais e 15 partidos. A forma como os militares reagirem ao voto popular e a capacidade dos eleitos para gerirem equilíbrios internos e promoverem reformas, designadamente do aparelho militar, é determinante para o futuro próximo de um país que tem estado no mapa internacional por más razões – por ser frequente palco de violência político-militar, por ser plataforma do tráfico internacional de droga.
“As pessoas estão com receio de, a qualquer momento e à semelhança do que aconteceu a 12 de Abril, os militares poderem afastar a vontade popular”, confirma Luís Vaz Martins, presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos.
Mais do que árbitro, decisor
O carácter parlamentar do regime faria pensar que são as legislativas as eleições verdadeiramente relevantes. Mas na Guiné-Bissau, como em outros países africanos, “o Presidente tem um papel decisivo em todas as questões importantes, mais do que árbitro é um decisor”, observa Eduardo Costa Dias, investigador do ISCTE-IUL (Instituto Universitário de Lisboa). O golpe de 2012, liderado por António Indjai, chefe das Forças Armadas, ocorreu precisamente antes da segunda volta das presidenciais, quando, após um triunfo na primeira volta, com quase 49%, tudo apontava para a eleição como chefe de Estado do então primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior, Cadogo, então líder do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde).
Sem sondagens, sem forma de avaliar o modo como os guineenses encaram o golpe de 2012 e olham para as alternativas que lhes são apresentadas, é impossível fazer prognósticos. Mas, mesmo tendo partido tarde para a corrida eleitoral, por ter demorado a definir liderança e estratégia, seria uma surpresa – atendendo ao histórico – se as legislativas não fossem ganhas pelos “libertadores”. Nas anteriores legislativas, em 2008, o PAIGC conseguiu 49,52% e elegeu 67 dos cem deputados.
Confirmando-se um triunfo do antigo partido único, o próximo primeiro-ministro será o recém-eleito líder, Domingos Simões Pereira, DSP, antigo secretário executivo da CPLP (Comunidade dos País de Língua Portuguesa). Pereira já procurou tranquilizar a desconfiança da cúpula militar e anunciou que não haverá “caça às bruxas”. Terá confidenciado em círculos privados o desejo de formar um governo que inclua outras forças partidárias, e de – mesmo sem António Indjai, indiciado pelos EUA por tráfico de droga – manter a chefia militar em mãos balantas, a principal etnia do país, com grande peso nas Forças Armadas.
A outra grande força política guineense é o PRS (Partido da Renovação Social), que há seis anos elegeu para o Parlamento cessante 28 deputados conseguidos com 25,21% dos votos. É agora liderado por Alberto Nambeia e estava já antes da morte Kumba Ialá, a ensaiar, pela primeira vez, um caminho sem o seu fundador e mais carismática figura.
Incógnita presidencial
O desfecho eleitoral parece mais incerto na corrida presidencial, em que pela primeira vez não participam candidatos que tenham sido “combatentes da libertação do país” – a independência foi proclamada em 1973, ainda antes do 25 de Abril.
Os apoios que reúnem e a dinâmica das suas campanhas fazem com que quatro dos candidatos sejam encarados como os que mais probabilidades parecem ter de passar a uma previsível segunda volta: João Mário Vaz, do PAIGC; Abel Incada, que corre pelo PRS; Nuno Nabiam, independente apoiado por Kumba, e ao qual são atribuídas ligações à cúpula militar; e Paulo Gomes, economista que foi administrador do Banco Mundial para a África Subsariana e tem o apoio de pequenos partidos e intelectuais. A tardia entrada em cena dos concorrentes “oficiais” permitiu aos dois independentes, que há meses estão no terreno, ambos com importantes meios, somarem apoios que podem revelar-se decisivos.
João Mário Vaz, conhecido como JOMAV, era ministro das Finanças do governo derrubado há dois anos. O apoio partidário deve garantir-lhe uma boa votação mas não necessariamente a eleição. Até porque a aparente unidade com que o PAIGC se apresenta às eleições não foi fácil nem é total. O partido viu alguns dos seus mais destacados militantes alinharem com o poder pós-golpe – o Presidente de transição, Serifo Nhamadjo, é oriundo das suas fileiras – e optou por “sacrificar” Cadogo para evitar a hostilidade da cúpula militar.
O primeiro-ministro derrubado pretendia voltar a concorrer à Presidência mas a direcção de Domingos Soares Pereira optou por uma solução de “compromisso”, deixando-o cair para não hostilizar os golpistas para quem Cadogo é “o inimigo”. A alternativa foi JOMAV, um nome que também não agrada à cúpula militar, pela sua ligação ao antigo chefe do Governo, e que não convencerá também todo o PAIGC, onde há simpatia por outros concorrentes à cadeira presidencial, designadamente por Paulo Gomes.
O peso balanta
O comportamento do grosso do eleitorado balanta, que se tem revisto politicamente no PRS, determinará o nome desta área política que poderá avançar para a segunda volta. Para além de Abel Incada, estão na corrida presidencial três outros nomes do campo “renovador”: Nuno Nabiam, presidente da Agência de Aviação Civil, o favorito de Kumba, que chegou a fazer campanha por ele, e dois candidatos que parecem reunir menos apoios: Ibraima Sori Djaló, presidente do Parlamento, e Jorge Malú, que já ocupou o mesmo cargo. Também Iaia Djaló, um antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, que deixou o PRS em 2006 e agora lidera o Partido da Nova Democracia, concorre à chefia do Estado.
Até à morte de Kumba admitia-se uma fragmentação do voto da maior etnia do país, cerca de um quarto dos eleitores. A incógnita é agora saber o impacto eleitoral da morte, por paragem cardio-respiratória, há pouco mais de uma semana, do antigo Presidente da República, entre 2000 e 2003. O seu desaparecimento sem herdeiro designado – apesar do apoio que deu a Nabiam – “criou nos balantas um sentimento de orfandade” e pode mudar esse cenário e levar a uma concentração de votos no PRS e no candidato oficial do partido, Abel Incada, um “balanta puro e duro”, admite Xavier Figueiredo, director do boletim Africa Monitor. Miguel de Barros, sociólogo, director executivo da organização não-governamental guineense Tiniguena, afirma que o desaparecimento de Kumba permitiu a Incada “projectar-se”.
A concentração ou dispersão do voto balanta determinará não só o nome do candidato da área “renovadora” que poderá passar à segunda volta como vai interferir na definição do eventual adversário nessa ronda.
Paulo Gomes, o outro nome forte da corrida presidencial, formado em Paris e em Harvard, colhe simpatias nos meios urbanos, na diáspora e em sectores culturais. Situa-se no espaço eleitoral que valeu a Henrique Rosa, nas eleições de 2009, ganhas por Malam Bacai Sanhá, um quarto dos votos, o que faz dele uma alternativa a ter em conta. Tem também, como há dias disse à Reuters Vicent Foucher, do International Crisis Group, “fortes ligações na África Ocidental e uma imagem de potencial reformador”.
Há dias, num trabalho sobre a Guiné-Bissau, o centro de estudos com sede em Bruxelas de que Foucher faz parte, escreveu que as eleições de hoje podem abrir caminho para a chegada à hierarquia do Estado de uma “nova geração de políticos” capazes de “re-legitimar o Estado e convencer os militares a obedecerem [ao poder político eleito]”. Cansados da instabilidade, os guineenses esperam para ver.
A fase mais tensa do processo de transição começa quando forem conhecidos os resultados eleitorais. Miguel de Barros concorda que o grande desafio destas eleições é o “nível de aceitabilidade” da escolha presidencial pelas Forças Armadas – o nome do próximo Presidente da República será determinante para manutenção, ou não, da actual chefia militar. Mas considera que também o PAIGC e o PRS podem ver-se obrigados a conviver com escolhas presidenciais que não são as suas nestas eleições em que “tudo pode acontecer”.
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