Antes de chegar ao mercado de Bandim, no centro de Bissau, já tinha
reparado nas nuvens. Enormes, grossas, esculpidas em branco puro, a
contrastarem com todas as cores do chão: a terra vermelha, rasgada por
faixas de lama brilhante, e o lixo de cores desmaiadas, apodrecidas,
castanhos tristes. Sobre isto passavam mulheres a levarem todo o tipo de
volumes à cabeça: caixas, latas, baldes. As cores dos tecidos que
usavam eram vivas como se ardessem, azul a arder, verde a arder, amarelo
a arder. Às vezes, quando vistas de frente, essas mulheres tinham um
par de pezinhos espetados sobre as ancas. Quando vistas por trás, lá
estava o rosto da criança, de face espalmada sobre as costas da mãe, a
escutar-lhe a respiração, com o corpo moldado pela faixa que as unia.
Bandim anoitecia e, talvez por isso, notava-se uma pressa, uma febre.
Muitas mãos escolhiam de montes de sapatos usados, todos diferentes.
Nesse mesmo passeio, os corpos caminhavam desencontrados, tentavam
desviar-se uns dos outros à última hora e, com frequência, não
conseguiam. Esbarravam com os cotovelos, com os ombros, com os joelhos.
Seguíamos à distância de nos cheirarmos. Pelo meio, homens com carrinhos
de mão cheios de qualquer peso. Às vezes, durante minutos contados,
algum desses encostava-se e ficava a ver o movimento, orgulhoso do seu
carrinho de mão. Na estrada, um pouco abaixo do passeio, pessoas em
cadeiras de rodas passavam a pedalar com as mãos à frente do peito. Logo
atrás, entre táxis amolgados a apitarem sem descanso, os toca-toca,
pintados de amarelo e azul, paravam onde calhava. A porta de trás
abria-se de repente, como se tivesse levado um pontapé desde o interior,
talvez tivesse. Saía um e entravam meia dúzia ou todos os que
quisessem, havia sempre lugar. Esses toca-toca iam para o Aeroporto,
para São Paulo, para o Bairro Militar ou para o Enterramento.
E, de repente, a noite. Num canto, uma sombra zangada com o
telemóvel, a gritar em crioulo. Noutro canto, outra sombra a gritar sem
que se percebesse para quem, para ninguém quase de certeza. E os
contornos da multidão desenhados pelos faróis dos carros. Gente a
conversar comigo no meio, através de mim. Às vezes, eu a desviar-me de
algum jato de cuspo que tivesse sido lançado para o lado, entre os
dentes. A pouca luz era ainda suficiente para ver os pequenos montes de
vegetais sobre tabuleiros de lata. Algumas vendas com os balcões
cobertos por uma rede de ferro, iluminadas desde o interior por
candeeiros a gás, a venderem latas pobres e caixas de fósforos,
saquinhos de óleo de palma e de molho picante, com letreiros toscos a
dizerem "há cana bordão", sumo de caju fermentado, alcoólico. E a pressa
de toda a gente era cada vez maior. Alguém me despejou um alguidar de
água negra sobre os pés. Saído do meio da multidão, um homem com uma
perna encolhida e torta avançava com desenvoltura impressionante,
apoiando-se num pau grosso, a remar no chão.
E foi como se o céu rebentasse. Os trovões pareciam chegar desde o
fundo da terra.
A chuva caia como de fosse disparada, atirada com
maldade, descarregada. As gotas davam chapadas onde batiam. Apagaram-se
os fogareiros de assar espetadas de carne seca e maçarocas de milho.
Encostei-me a uma parede, com as goteiras a escorrerem diante de mim e
de outros que ainda tinham apanhado lugar, com camisolas de algodão
grosso, atravessadas por suor e terra. Os carros apitavam desesperados. A
chuva parecia querer lavar tudo, purificar tudo. Quando os relâmpagos
riscavam o céu, era como se, por instantes, fosse dia pálido e cinzento.
Nessa trégua, podia ver-se uma multidão de rostos abrigados nos
destroços de Bandim.
Quando acalmou, a noite era opaca. Poucas luzes, excepto os
relâmpagos, a afastarem-se, a desenharem altas copas de árvores de
encontro ao horizonte. Tranquilo, talvez a sorrir, eu regressava cheio
de imagens. Então, numa rua de terra, senti agarrarem-me na mão e
levarem-me o telemóvel. Corri alguns passos atrás desse vulto, mas
vieram mais por trás. Agarrei a carteira e puxaram-me de todos os lados.
Um deles deu-me um murro no nariz e na boca para me fazer largá-la. Não
conseguiu. Eram uns cinco ou seis e desapareceram na escuridão.
Quando cheguei à luz, tinha a camisola e as mãos cheias de sangue. A
ferida no nariz não doía muito, estava meio dormente, só começou a doer
mais tarde. Está a doer agora. Sei bem que os finais costumam encerrar
uma conclusão mas, neste momento, não sei o que pensar. Só sei que foi
assim que aconteceu.
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