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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"Perigosamente perto de ser um Estado fracassado” Ramos Horta

“Guiné-Bissau está perigosamente perto de ser um Estado fracassado” - 02/10/2013

A Guiné-Bissau está “perto de ser um Estado fracassado”, mas isso não é culpa da violência étnica nem religiosa, que jamais existiu nesse pequeno país da África ocidental, afirma o prêmio Nobel da Paz e enviado da Organização das Nações Unidas (ONU), José Manuel Ramos-Horta.

A “direção política do país jamais conseguiu ter boas relações com os militares e vice-versa. E pode-se dizer que hoje a Guiné-Bissau está perigosamente próxima de se converter em um Estado fracassado”, disse o ex-presidente, ex-primeiro-ministro e ex-chanceler de Timor Leste em entrevista à IPS durante sua passagem por Lisboa.
O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, nomeou Ramos-Horta seu representante para negociar a democratização da Guiné-Bissau, que viveu seu último golpe de Estado em abril de 2012, levando em conta suas credenciais pessoais e políticas na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Mas o cronograma inicial para que esse país retome o caminho democrático, que previa eleições em 24 de novembro, não poderá ser cumprido por problemas políticos e de organização, reconheceram em setembro os chanceleres de sete dos oito países da CPLP (Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste), que não dialoga com o regime da Guiné-Bissau.

(foto - Katalin Muharay)


IPS: Existe uma possibilidade real de paz nesse país?
JOSÉ MANUEL RAMOS-HORTA: Sou realista e otimista. Ao contrário do ocorrido em outras partes do mundo, a Europa incluída, na Guiné-Bissau nunca existiu violência étnica ou religiosa. Jamais foram incendiadas ou destruídas igrejas e mesquitas ou cemitérios foram profanados, como acontece até na União Europeia (UE). Para garantir a paz e assentar a democracia, o que se necessita urgentemente é que os políticos e os militares não pressionem demasiadamente o povo.

IPS: Parece que o último golpe foi a gota que fez transbordar a paciência da comunidade internacional.
JMRH: É verdade. Esse último golpe não tinha a menor explicação, exceto esta responsabilidade das duas elites, política e político-militar, nesta sequência de violência iniciada por João Bernardo “Niño” Vieira em 1980, quando derrubou o presidente Luís Cabral, anulando seis anos de sucesso na Guiné-Bissau após a independência de Portugal. Há 20 ou 30 anos, os golpes na África eram cotidianos. Hoje, a União Africana (UA) tem posturas até mais radicais do que a UE sobre a defesa da democracia. Entretanto, é preciso dialogar com quem tem as armas, pragmaticamente. Se não há diálogo, para que serve a democracia? Justamente para contar com canais de entendimento foi que o secretário-geral das Nações Unidas me nomeou seu representante e já foram registrados resultados.

IPS: Pouco depois do golpe, a UA, a CPLP, a UE, os Estados Unidos e a ONU consideraram que a Comunidade Econômica de Estados da África Ocidental (Cedeao) tivera uma atitude vacilante diante da ação militar. Após nove meses de missão, com vê isso?
JMRH: As posturas dessas instituições e desses países eram totalmente corretas, mas também é necessário destacar que a Cedeao interveio com pragmatismo para evitar que a situação se agravasse mais e impediu a dissolução do parlamento e a eliminação da Constituição. Eles investiram muito dinheiro, mas esta situação é insustentável. O importante nesta etapa e realizar eleições o mais rápido possível, espero que no prazo de cinco a seis meses, para restabelecer a ordem democrática e uma estratégia de recuperação do país.

IPS: Quem dialoga hoje com o regime guineense?
JMRH: Não houve reconhecimento de governos ou organizações importantes, mas existe uma relação do dia a dia com Estados Unidos e Grã-Bretanha, que dialogam com o regime. A Espanha manteve seu embaixador e a França sempre está ativa através de um encarregado de negócios. A UE impôs algumas sanções, mas manteve todos os programas sociais e humanitários. Portugal realiza uma cooperação por meio de organizações não governamentais e igrejas. Esta postura portuguesa se deve a algo muito simples: a relação secular com o povo guineense, que está ali e continuará estando, independente do regime.

IPS: Além da grande fragilidade do Estado, quais os principais problemas da Guiné-Bissau?
JMRH: A pobreza extrema, com baixíssimos indicadores sociais, a instabilidade política persistente, as debilidades e rachas do exército, a intervenção frequente dos militares na política, e, nos últimos anos, a penetração dos cartéis latino-americanos da droga, tanto na Guiné-Bissau como em muitos outros Estados da região, o que exacerba as dificuldades desses países com o surgimento de novas áreas de delinquência, tensões e perigos.

IPS: Sobre este último problema, se diz que a Guiné-Bissau está se convertendo em um “narcoEstado”.
JMRH: Isso é um disparate de alguns acadêmicos que escrevem estudos pouco assentados na realidade, repetidos por meios de comunicação sem o menor rigor. Um acadêmico faz uma análise, uma agência de notícias de um grande país do Norte a divulga e depois todos os jornais vão à mesma fonte, que pode ou não ser objetiva e imparcial, já que ninguém fez uma investigação exaustiva. A Guiné-Bissau é apenas um pequeno país vítima dos cartéis da droga da América Latina e das máfias da UE e da Rússia. Esses são os verdadeiros responsáveis. Como representante do secretário-geral da ONU, não posso mencionar cidades que são verdadeiros centros de lavagem de dinheiro da droga, onde é evidente uma grande opulência, com mansões, prédios e automóveis de luxo, enquanto em Bissau (capital) o que se vê nas ruas são ruas com cabras e vacas.

IPS: Outro problema mencionado com frequência são as “cotas étnicas” dentro das forças armadas, com clara predominância dos balantas nas cúpulas.
JMRH: Quando se levanta falsos problemas criam-se grandes dificuldades. A Guiné-Bissau é multiétnica, multicultural e com várias religiões. Esta é uma riqueza, e não uma desvantagem. Os balantas historicamente se dedicaram à agricultura e à criação de gado. Mas também são um povo de grande tradição guerreira, que se afirma como combatente, o que faz parte de sua própria história. Há outros grupos que não gostam das armas, mas do comércio, e outros que preferem ser funcionários do Estado. Porém, muitas vezes especialistas ocidentais, sem conhecerem a realidade, afirmam que é preciso ter equilíbrio étnico nas forças armadas. Isto não é nada realista, porque não se pode exigir de um comerciante que seja militar.

(in:IPS)

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