“Guiné-Bissau está perigosamente perto de ser um Estado fracassado” - 02/10/2013
A Guiné-Bissau está “perto de ser um Estado fracassado”, mas isso não
é culpa da violência étnica nem religiosa, que jamais existiu nesse
pequeno país da África ocidental, afirma o prêmio Nobel da Paz e enviado
da Organização das Nações Unidas (ONU), José Manuel Ramos-Horta.
A “direção política do país jamais conseguiu ter boas relações com os
militares e vice-versa. E pode-se dizer que hoje a Guiné-Bissau está
perigosamente próxima de se converter em um Estado fracassado”, disse o
ex-presidente, ex-primeiro-ministro e ex-chanceler de Timor Leste em
entrevista à IPS durante sua passagem por Lisboa.
O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban
Ki-moon, nomeou Ramos-Horta seu representante para negociar a
democratização da Guiné-Bissau, que viveu seu último golpe de Estado em
abril de 2012, levando em conta suas credenciais pessoais e políticas na
Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Mas o cronograma inicial para que esse país retome o caminho
democrático, que previa eleições em 24 de novembro, não poderá ser
cumprido por problemas políticos e de organização, reconheceram em
setembro os chanceleres de sete dos oito países da CPLP (Angola, Brasil,
Cabo Verde, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste),
que não dialoga com o regime da Guiné-Bissau.
(foto - Katalin Muharay) |
IPS: Existe uma possibilidade real de paz nesse país?
JOSÉ MANUEL RAMOS-HORTA: Sou realista e otimista. Ao contrário
do ocorrido em outras partes do mundo, a Europa incluída, na
Guiné-Bissau nunca existiu violência étnica ou religiosa. Jamais foram
incendiadas ou destruídas igrejas e mesquitas ou cemitérios foram
profanados, como acontece até na União Europeia (UE). Para garantir a
paz e assentar a democracia, o que se necessita urgentemente é que os
políticos e os militares não pressionem demasiadamente o povo.
IPS: Parece que o último golpe foi a gota que fez transbordar a paciência da comunidade internacional.
JMRH: É verdade. Esse último golpe não tinha a menor
explicação, exceto esta responsabilidade das duas elites, política e
político-militar, nesta sequência de violência iniciada por João
Bernardo “Niño” Vieira em 1980, quando derrubou o presidente Luís
Cabral, anulando seis anos de sucesso na Guiné-Bissau após a
independência de Portugal. Há 20 ou 30 anos, os golpes na África eram
cotidianos. Hoje, a União Africana (UA) tem posturas até mais radicais
do que a UE sobre a defesa da democracia. Entretanto, é preciso dialogar
com quem tem as armas, pragmaticamente. Se não há diálogo, para que
serve a democracia? Justamente para contar com canais de entendimento
foi que o secretário-geral das Nações Unidas me nomeou seu representante
e já foram registrados resultados.
IPS: Pouco depois do golpe, a UA, a CPLP, a UE, os Estados Unidos e
a ONU consideraram que a Comunidade Econômica de Estados da África
Ocidental (Cedeao) tivera uma atitude vacilante diante da ação militar.
Após nove meses de missão, com vê isso?
JMRH: As posturas dessas instituições e desses países eram
totalmente corretas, mas também é necessário destacar que a Cedeao
interveio com pragmatismo para evitar que a situação se agravasse mais e
impediu a dissolução do parlamento e a eliminação da Constituição. Eles
investiram muito dinheiro, mas esta situação é insustentável. O
importante nesta etapa e realizar eleições o mais rápido possível,
espero que no prazo de cinco a seis meses, para restabelecer a ordem
democrática e uma estratégia de recuperação do país.
IPS: Quem dialoga hoje com o regime guineense?
JMRH: Não houve reconhecimento de governos ou organizações
importantes, mas existe uma relação do dia a dia com Estados Unidos e
Grã-Bretanha, que dialogam com o regime. A Espanha manteve seu
embaixador e a França sempre está ativa através de um encarregado de
negócios. A UE impôs algumas sanções, mas manteve todos os programas
sociais e humanitários. Portugal realiza uma cooperação por meio de
organizações não governamentais e igrejas. Esta postura portuguesa se
deve a algo muito simples: a relação secular com o povo guineense, que
está ali e continuará estando, independente do regime.
IPS: Além da grande fragilidade do Estado, quais os principais problemas da Guiné-Bissau?
JMRH: A pobreza extrema, com baixíssimos indicadores sociais, a
instabilidade política persistente, as debilidades e rachas do
exército, a intervenção frequente dos militares na política, e, nos
últimos anos, a penetração dos cartéis latino-americanos da droga, tanto
na Guiné-Bissau como em muitos outros Estados da região, o que exacerba
as dificuldades desses países com o surgimento de novas áreas de
delinquência, tensões e perigos.
IPS: Sobre este último problema, se diz que a Guiné-Bissau está se convertendo em um “narcoEstado”.
JMRH: Isso é um disparate de alguns acadêmicos que escrevem
estudos pouco assentados na realidade, repetidos por meios de
comunicação sem o menor rigor. Um acadêmico faz uma análise, uma agência
de notícias de um grande país do Norte a divulga e depois todos os
jornais vão à mesma fonte, que pode ou não ser objetiva e imparcial, já
que ninguém fez uma investigação exaustiva. A Guiné-Bissau é apenas um
pequeno país vítima dos cartéis da droga da América Latina e das máfias
da UE e da Rússia. Esses são os verdadeiros responsáveis. Como
representante do secretário-geral da ONU, não posso mencionar cidades
que são verdadeiros centros de lavagem de dinheiro da droga, onde é
evidente uma grande opulência, com mansões, prédios e automóveis de
luxo, enquanto em Bissau (capital) o que se vê nas ruas são ruas com
cabras e vacas.
IPS: Outro problema mencionado com frequência são as “cotas
étnicas” dentro das forças armadas, com clara predominância dos balantas
nas cúpulas.
JMRH: Quando se levanta falsos problemas criam-se grandes
dificuldades. A Guiné-Bissau é multiétnica, multicultural e com várias
religiões. Esta é uma riqueza, e não uma desvantagem. Os balantas
historicamente se dedicaram à agricultura e à criação de gado. Mas
também são um povo de grande tradição guerreira, que se afirma como
combatente, o que faz parte de sua própria história. Há outros grupos
que não gostam das armas, mas do comércio, e outros que preferem ser
funcionários do Estado. Porém, muitas vezes especialistas ocidentais,
sem conhecerem a realidade, afirmam que é preciso ter equilíbrio étnico
nas forças armadas. Isto não é nada realista, porque não se pode exigir
de um comerciante que seja militar.
(in:IPS)
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